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6 de dezembro de 2010

53 - Estórias no Sofá - uma história de amor

A mulher se sentou no sofá da sala sóbria, de mobiliário robusto esculpido em madeira nobre, fruto dalguma herança que novos não eram, apesar de muito bem conservados. Estava só. Pouco importa e muito pouco relevante para a sua constante, procurada e desejada, solidão. Aliás, a solidão e o silêncio faziam-na conhecer-se melhor e amplificavam todos os seus sentidos.
Às vezes o silêncio era demais, pensava.
Quando assim acontecia punha uma música no ar, suave e quase em surdina, e se deixava embalar nos sonhos que estavam adormecidos no ar daquela sala. Outras vezes... era o absoluto silêncio.
Umas vezes rabiscava em papel branco com um lápis de carvão as suas lembranças, os seus lamentos, as suas saudades, os seus medos e as suas alegrias. Conversava consigo em forma de palavras escritas. Dizia, memórias passadas para uma vida futura. Quem a visse pensava estava louca, pois tanto podia parecer estar a dormir um sono profundo, como num estante estava a rabiscar uma tantas letras, a atirar com raiva uma folha amassada de papel contra a parede assim num libertar de angústias, como serenamente olhava pela janela. Nesta altura quase de certeza estava à procura da palavra exacta, pois de seguida ia correr paras o sofá e raivosamente escrevia com medo de a perder. 
Terminada a música, umas vezes o silêncio era notado e lá se levantava ela para pôr outra, sempre suave e quase sempre em surdina., outras vezes o silêncio permanecia silenciosamente calado e não parecia incomodar. Tantas e tantas vezes inspirava sofregamente duma só vez o ar daquela sala, como se tivesse medo de sufocar por se esquecer de respirar, outras vezes imóvel, sonhava, ou se recordava ou apenas se ausentava esquecendo de levar o corpo. Mas no instante seguinte voltava para o papel como por magia.
Acho eu quer nunca lhe ensinaram a esperar e nunca lhe disseram que o mundo anda às voltas. Fora sempre a menina rica, mimada e que tudo tinha.
Agora, mulher madura, solitária, viúva de meia dúzia de anos, sentia a falta do seu Manuel. Não, não era na cama. Era o perfume, a gargalhada fácil, a voz compassada num ritmo frenético. Não, não era a carícia. Era só mesmo a presença enorme daquele corpo volumoso enchendo a sala e o seu olhar ternurento disparado contra ela.
O que ela escrevia afinal, vim a descobrir muitos anos depois, eram cartas ao seu Manuel, ao falecido e saudoso marido. Ela não conseguia viver sem ele, mesmo quando mostrava ser a mulher forte, a chefe, a dona, a rígida e fria senhora de seu nariz.
No sofá regressava a mulher doce e humana que ninguém sabia existia naquela figura.
Afinal de contas, a mulher que procurava o silêncio e desejava a solidão fingia não ser a mulher madura que sofria no silêncio da solidão.

Sanzalando

1 comentário:

  1. Que coisa boa eu vim encontrar e ler aqui!
    Que Hino à mulher, à vida e ao amor...
    Que texto Lindo que teve o condão de fazer-me sorrir d'alma com um brilhozinho nos olhos...
    Olhe, vou confessar mesmo. Não foi só brilho nos olhos. Não sei se ando chorona se o que é Belo, hoje mais do que nunca, me provoca emoção e lágrimas.
    Parabéns Poeta!
    Ganhou!
    Mas eu também...

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