"Fio": Estórias à beira-mar
carranca
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Uma estória verdadeira (48) Hoje, 18:39
Forum: Conversas de Café
Chegados ao cimo de um monte e eu me punha a pensar ali acaba esta auto-estrada. Mas logo via que havia outra igual até a vista alcançar. Assim foram uma série de pensamentos sucessivos. De pedra a pedra até ao fim, à desconhecida placa que haveria de aparecer e que diz: ‘Benvindos à comuna da Lucira’. E ali começa o asfalto outra vez. Ai minhas cruzes e outras coisas mais que estavam que nem massa de pão de andar a rebolar. Fiquei a saber mais ou menos como é que um fósforo se sente dentro da caixa num bolso de um casaco qualquer. Agora é uma papa, pensava eu, não manifestando em voz alta para não ser agarrado noutro engano mais uma vez. Com isto tudo passava já das 16 horas, hora de esticar as pernas, abraçar a placa e pensar estou aqui, acorda que não é sonho. Mas foi bom não foi esta ginástica que fizemos? Depois daquele trial, esta estrada parece mesmo uma via rápida. Conduta de água nos paraleliza. No tempo da guerra, me disseram, que tinha ali guardas a tomar conta dela, agora desprecisa de todo e ela ali está. Um ou outro buraco, melhor, uma ou outra falta de alcatrão a nos dizer para andar mais devagar, pois surpresas sempre aparecem e a gente não se quer estragar agora que falta pouco. Lá à frente vai ser Bentiaba. Sim, S. Nicolau do antigamente. Com esta estrada vamos chegar lá num instante, disse eu com voz de quem já não acerta nenhuma. Eu é que levava agora o comando das rodas e o pedal de dar gás no motor. Aprendi depressa o que significam umas pedritas a perpendicular a estrada. Uma ponte de mulola havia ido com a força da água pelo que se tinha de caminhar ao lado do asfalto para entrar lá à frente outra vez e uma série de vezes assim sem conta até que se chegou ao pé de um rio, antes de Bentiaba e se vê que uma chuva daquelas danadas levou a ponte e a estrada que depois do rio lhe era paralela. Uns quilómetros a fazer lembrar os que havíamos passado naquelas horas em que o termómetro chegou só a marcar 47 debaixo do sol. Aqui já se cruzou com uma ou outra viatura motorizada, desde autocarro a candongueiro aqui havia. Mais descansado. Não é bom viver na solidão. Eu não lhe gosto, pelo menos. Pôr do sol e nós estamos cá em cima a ver Bentiaba em toda a sua enormidade. Zona prisional e zona habitacional. Não vamos fazer visita não senhor que eu por motivos outros aí não vou de dar entrada. Uma lágrima a recordar tempos de outrora. Mais umas fotos para recordar. Lá em baixo a leito do rio a mostrar que não chove há muito. Se tiram retratos em todos os ângulos, mesmo contra o sol que se estava a querer ir deitar. Se passa o rio seco por uma ponte, se entra numa aldeia, se passa perto do mar e se regressa à estrada do alcatrão, subindo subida que parece é nos Alpes. Camionetas se vão cruzando, se vão ultrapassando. Há vida, a vida mexe por aqui. Sorriso estampado no rosto sigo em direcção ao sul. O lusco fusco começa a tornar difícil ver mais para além da estrada. Ali deve ser o desvio do Mucuio, lá o da Baía das Pipas e coisas que tal. As placas fazem-me falta. E quem é que andou a fazer tiro ao alvo nos sinais de cimento do tempo ainda da Junta Autónoma das Estradas de Angola. Uns estão partidos mesmo pelo caule e se vê que foi em treino de tiro ao alvo. Sem estrondo caiu a noite. Parou-se a viatura para acertar os faróis. Com tanto salto alguma coisa havia que sair do lugar e só noite dentro a gente podia dar com ela. Faróis acertados há que seguir a viagem. A gente vai dar à estrada Lubango-Namibe ou vice-versa, conforme os amores. Aí nesse triângulo de cruzamento a gente voltou a parar. Parou e arranjou um dilema. Dilema que devia ter sido resolvido de moeda no ar mas não foi. Se pensou. E se se pensa muito às vezes dá asneira. Para variar foi mesmo o que aconteceu
Sanzalando em Angola
Carlos Carranca
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