recomeça o futuro sem esquecer o passado

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30 de setembro de 2006

07 - Estórias no Sofá - Um casal qualquer - 2 de 2

Aproveitei depois o silêncio dela e continuei a divagar os olhos pelas campas perto e pelas que mal conseguia ver também, tentando destranspirar o que ela me tinha feito transpirar com aquela conversa. Como sempre eu fico mais para lá com aquela conversa, mais para além do humanamente suportável. Parece eu fico animalescamente humano.
Deixei-a depois na casa dela e segui directo para a minha.
Casa vazia. Marcolina pelos vistos tinha aproveitado para sair.
Me sentei no sofá e com a televisão ligada fui matutando contra a vontade na estória da ressuscitação. Procurei um canal com filmes da natureza ou outra coisa para distrair. As horas passam numa lentidão que nem parece que passam.
Marcolina chega a casa e já é tarde. Entra pela porta e eu, Oliveira com cara de assustadoramente zangado, estou no sofá no meio da penumbra, sentado e a olhar fixamente para ela.
Ela se limita apenas a perguntar-me se ainda estou acordado. Rematei com a pergunta mais estúpida que me lembrei, que foi lhe perguntar onde ela esteve e conclui lhe perguntado se aquilo eram horas de mulher chegar a casa.
Ela não se desfez e se limitou a dizer que depois do trabalho foi com as colegas num bar.
Me saiu da boca sem se quer ter pensado lhe dizer que ela era casada, não fosse ela ter esquecido.
Ela me responde, na sua voz seca que não só se tinha esquecido como também se estava agora a se lembrar que tinha casado com um homem que parece velho, ranzina e rabujento.
Não sei o que é que me passou pela cabeça, lhe segurei o braço delicado e a joguei no sofá.
Lhe perguntei com quem ela me andava a trair, isto no meio de berros e palavras atropeladas umas nas outras. Gritei que lhe matava e outras coisas mais.
Assustada me dizia que só tinha ido no bar com as colegas. Era só isso, me garantia ela. Mais uns berros daqui e outros dacolá acabamos enrolados no sofá como se fosse a primeira vez. Lhe fui despindo, muito contra a vontade dela.
Marcolina, linda e nua sobre o sofá tentava esconder as volumosas mamas.
Assim num repente vejo uma nódoa negra na nádega esquerda e na coxa direita alguma coisa parecida com uma dentada.
Me andas a trair porque isto são mostras de traição, lhe disse apontando atrapalhadamente para as marcas que eu via.
Nem esperei resposta. Foi ali mesmo no sofá.
Ela ofegante, calada e olhar cansado.
Me levantei, fui para o quarto e acho adormeci logo pois não me lembro mais nada.Hoje de manhã, Marcolina preparou o café. Lhe disse, antes de lhe dizer os bons dias, que ontem tinha sido incrível. Ela me respondeu que eu também o tinha sido. E hoje como vai ser, me perguntou ela. Lhe respondi que queria algo diferente. Ela me respondeu que ia pensar e saímos cada um para o seu trabalho, eu com vontade de correr mundo.

Sanzalando

Paixão matemática

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29 de setembro de 2006

07 - Estórias no Sofá - Um casal qualquer - 1 de 2

Meu nome é Oliveira da Silva, tal e qual nome já tinha sido do meu pai e do pai dele. Falta mesmo originalidade quando nos baptizaram ou então tinham um sonho de criar um império qualquer e fazer assim como uma dinastia onde não se precisa gastar dinheiro a fazer novas placas lá no gabinete do director. Sei lá eu que nunca se falou nisso. Eu não goto que o meu dia de hoje seja igual ao de ontem nem de anteontem e coisas de repetição não vão comigo à bola. Emprego comigo é só mesmo por obrigação. Me iam chamar de vadio e isso eu não gosto. Ando nos quarenta mas acho mesmo a minha cabeça parou nos vinte e um. Mas isto é eu falar de mim, que pode não ser o mesmo que o vizinho me vê.
Quem me vê me vê como gente vulgar e não como o génio que eu sei que sou. Apenas eu sei e a minha Marcolina acho que também sabe. Pudera, vivendo comigo faz tantos anos, se não souber é porque anda distraída.
Todos os pretextos são bons para faltar ao trabalho e ontem foi mais um dia de falta, justificada de papel passado e tudo. Sim que eu não sou para invenções de indisposições súbitas e coisas e tal.
De manhã fui levar a minha mãe ao hospital e aproveitando a volta resolvemos passar no cemitério para ver como estão as flores que o coveiro plantou no túmulo do meu pai, Oliveira e Silva, falecido faz mais de quinze anos de coração parado assim num repente instantâneo. Se calhar ele tinha pilhas não alcalinas e elas deram o berro antes do tempo com aquele ácido todo a lhe encharcar o coração, que desistiu de bater assim afogado nos ácidos.
E sempre que vamos ao cemitério e ficamos num olhar de silêncio a olhar para a lápide. Como sempre, minha mãe começa a reflectir sobre a vida e a morte.
Me disse ela que no dia do Juízo Final todo mundo que está aqui nestes túmulos se vão levantar e começamos a imaginar a confusão que vai ser.
À minha cabeça vieram aquelas cenas do filme " Os Mortos-Vivos" com mãos empurrando as lápides e corpos apodrecidos a saírem das covas.
Fiquei intrigado e perguntei à minha mãe como ela podia imaginar uma coisa daquelas. Ela, num repente, como se já esperasse a minha pergunta remata que está escrito que os mortos acordarão do descanso para serem julgados pelas suas obras.
Perguntei de seguida se eles iam ressuscitar dos ossos que ficaram e os que tinham sido cremados como é que ia ser.
Ela me respondeu que ressuscitam só, já que o corpo não é mais que o templo do espírito.

Sanzalando

Na BD

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28 de setembro de 2006

a2 - Estórias no Sofá - Saída do paraíso

Me contaram esta e eu vos reconto sem acrescentar uma letra que seja, fotocopialmente :
No princípio do mundo, nada crescia. Mas existiam pessoas, montanhas, árvores, animais, rios, mares, tudo. Frutos e sementes de todas as espécies. Nada nascia nem desaparecia. Não caía uma folha, não se abria um fruto, não nascia uma criança.
Nem as pessoas, vendo-se umas às outras, procuravam saber para o que existiam. Não pensavam e se elas não pensavam também não falavam.
Diz-se que no luchan apareceu pronto com todas as coisas que o mundo ainda hoje tem. O princípio das pessoas, dos animais, das plantas e das coisas apareceram prontas. No luchan também foi assim, apareceu cheiinhos daquilo que precisa de existir: sunguês, sanguês, ôbô, lagaia, galinha, cão, porco, rio, fruteira, coco, ar e luz.
Pois, no princípio de tudo, o que é que acontecia no auchan? Nada, absolutamente nada. Tudo existia, mesmo as pessoas. As pessoas eram já crescidas e nunca tinham sido crianças. Nem iam envelhecer, não havia Sana nem Sun. Não se sabia o que era nascer. Pessoas, animais, plantas nada propriamente tinha nascido. Existiam.
As pessoas não sabiam que relação tinham umas com as outras nem quem eram, nem para o que servia tudo o que as rodeava. Nem se era bom ou não o estar assim num tempo parado. Não estavam a dormir, mas também não estavam acordadas. Porque o não sabiam.
Mas a Lua passava e continuava a passar lá longe, por cima do luchan. Passou, passou, até que as pessoas sentiram e perceberam que a lua dizia coisas e fazia sinais que nunca eram os mesmos.
- O que é aquilo?
Foi a primeira frase que disseram, a primeira pergunta que puderam fazer. Todas as pessoas a fizeram. Começaram, então, a ser capazes de perguntar e de responder.
Perceberam que a Lua, de cada vez que passava, era diferente. Umas vezes, mostrava caras; outra, rios, montanhas, flores, mãos, frutos, gestos. E começaram a copiar e a imaginar e a aproveitar tudo o que as rodeava e comeram os frutos e serviam-nos umas às outras. Com isso, nasceu o tempo e a vida e entenderam o movimento.
Saíam do paraíso.
As pessoas já envelheciam e, por outro lado, nasciam crianças. As sanguês e os Sunguês notaram as suas diferenças e souberam que isso era bom.
Nascia o amor. E riam!!!!!

Sanzalando com MC

CATS

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27 de setembro de 2006

06 - Estórias no Sofá - Num banco de Jardim - 2 de 2

Me respondeu esboçando um sorriso, com palavras até que é fácil, porque as palavras entram aos milhares pelos ouvidos. Difícil é sentir o gosto da vida, me interrogou ele com esta afirmação afirmativa. É preciso sentir o gosto da vida. Viver é fácil, viver com gosto é que é difícil, me afirmou ele quase sem respirar.
Aí fiquei eu a pensar em como eu ia saber como é o gosto da vida, como ia aquecer aquele frio que estava a sentir. Queres ver que em vez de um triste no banco verde de jardim ficam aqui dois tristes, continuei eu nos meus pensamentos silenciosos.
Humberto me olhou novamente, olhos tristes de olhar em vão, e rematou que não sabia se era ele que tinha de mudar ou se era a vida por não saber amar. Estremeci num tremor de angústia de lhe não conseguir dizer uma palavra. Continuou ele, que só sabia fazer as perguntas, mas respostas não encontrava nem uma para amostra.
Tentei balbuciar uma palavra, mas nem gaguejando elas saíam.
Neste momento se sentou, bem no meio da gente os dois uma velhinha, curvada que até parecia um ponto de interrogação sem o ponto por baixo, tão enrugada que mal se via onde eram os olhos ou a boca.
Olhou para um e olhou para o outro numa lentidão só permitida naquela idade. Ninguém lhe disse palavra, mas se notou que ambos pensamos coisas que nem devíamos ter pensado. Ela não reparou ou então se esteve nas tintas para isso e começou a falar na sua voz de muitas horas faladas que o sol e a lua parecem dois opostos porque muito diferentes, mas que ela não as vê apenas dessa forma, as vê como uma soma, o sol com seu calor e a sua força, a lua que acalma as pessoas, que inspira paixões, romântica, a lua e suas fases, reflecte o brilho do sol, o sol que aquece, que brilha, que enobrece. Um brilha com o outro. A lua reflecte o brilho do sol que por sua vez abre espaço para a chegada de sua amada lua que não vem sozinha já que nasce acompanhada de suas estrelas. Sim, as diferenças aparecem, mas para se completarem.
Sem parar, a velhinha parecia tinha mudado de assunto e continuou a falar que era uma vez um monge que passeava na beira de um rio. Ele viu um escorpião que se afogava e decidiu tirá-lo da água. Foi, com cuidado, agarrou o escorpião e levou uma picada. Com a dor da picada, o mestre soltou o escorpião, que caiu na água e, de novo, estava a se afogar. O monge, então, tentou tirá-lo outra vez e, novamente, o escorpião lhe picou. Alguém que observava aproximou-se e lhe disse que ele era muito teimoso e, em jeito de pergunta lhe falou se ele não entendia que, cada vez que tentasse tirá-lo da água, ele o ia picar. O monge, na sua calma de monge, lhe respondeu que a natureza do escorpião é picar e isso não muda a sua natureza, que é ajudar. Então, com a ajuda de um ramo, o monge retirou o escorpião da água e lhe salvou a vida.
Com este remate da velhinha que nem ponta de lança, eu e Humberto, nos levantámos, com um gesto imitando vénia, lhe desejámos as boas tardes e saímos cada um para seu lado, sorriso na cara que até parecia já tinha ganho o dia.

Sanzalando

Recolhe-me

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26 de setembro de 2006

06 - Estórias no Sofá - Num banco de Jardim - 1 de 2

Humberto se sentou num banco de jardim que fica assim mais ou menos que perto da casa dele. Humberto hoje não tem a cara de quem a gente está habituado a lhe ver. Me sentei ao lado dele no banco verde do jardim.
Lhe disse olá mostrando todos os meus dentes, mostrando na voz uma alegria que nem eu mesmo sabia que tinha.
Humberto, sem dizer ao menos um olá, me disse que precisa dar um rumo na vida. Sair por aí chutando latas vazias, ver o pôr do sol, ver o nascer do sol, tomar banho de chuva, brincar com as cores do arco íris, cantar uma canção, pular os muros dos vizinhos e sentir o cheiro de terra, regressar à vida.
Lhe perguntei, mais não seja para ele não se sentir ali sozinho, mesmo estando eu a seu lado, se ele precisava encontrar o verdadeiro sentido da vida.
E continuei a falar coisas que me vinham à cabeça assim num repente que nem tinha tempo de pensar nelas. Precisas daquilo que te fará correr mais forte, aquilo pelo qual o teu coração irá disparar.
Me olhou nos olhos e disparou que precisa sentir o vento num dia quente, sentir e não ter medo de dizer o amor, ser amado e gritar ao mundo sem receios.
Aí foi minha vez de baixar a cabeça e assim numa surdina lhe disse que o que ele precisa é mesmo fazer uma longa viagem.
Lhe interrompi antes mesmo dele começar a falar, que essa viagem não é para o estrangeiro, não é para outra cidade. É bem mais perto que isso, porém muito longe, tanto assim que pouca gente já fez essa viagem.
Nos seus olhos lhe vi admiração e interrogação, ao mesmo tempo que parece ter pensado que eu, Antenor da Silva, me tinha cacimbado duma vez só.
É, disse eu antes que ele me mandasse dar uma volta, precisas viajar dentro de ti, conhecer o teu coração esse mesmo.
Me perguntou como é que ia mesmo para dentro dele se já lhe custava estar assim fora dele.
Precisas ter a cabeça leve, saberes escorregar docemente pelas coisas boas da vida sem ter a preocupação quando é que ela vai ficar amarga se é que alguma vez vai ficar, parar de tremer na alma, aprender a sentir, rematei eu logo em prontidão, lhe fui falando mostrando que estava tão lúcido quanto ele mesmo

Sanzalando

O vermelho

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25 de setembro de 2006

a1 - Estórias no Sofá - Um passeio pelo ôbô

Esta estória não é minha mas...também gosto de as ouvir

Uma manhã Henda resolveu passear sozinho no ôbô, encontrou um crocodilo que lhe disse:
- Ensina-me o caminho do rio porque eu me perdi.
O Henda respondeu:
-Para te levar até à beira do rio, não tenho confiança em ti.
Respondeu-lhe o crocodilo:
- Não duvides de mim porque não estou a enganar-te, mas, se não acreditas, amarra-me as mãos e as patas.
Henda assim o fez e depois carregou o crocodilo à cabeça.
Quando estavam perto do rio, Henda disse ao crocodilo:
- Como já chegamos, vou pôr-te no chão. A seguir, desatou as cordas com que o amarrara.
Logo que Henda voltou as costas, o crocodilo apanhou-o.
- O que queres fazer? interrogou Henda
- Quero comer-te – respondeu o crocodilo e, carregando com Henda marchou para o rio.
Encontraram uma avó.
Então Henda disse:
- Tenho a certeza de que me vais comer, mas deixa-me chamar esta avó para eu lhe contar o bem que te fiz e a paga que tu me dás.
Henda então contou o sucedido:
- Tratei bem este crocodilo e ele quer matar-me.
A avó respondeu:
- Isso não tem importância, porque no mundo, hoje em dia, quem faz bem só recebe ingratidões. Repara no que sucede comigo. Quando era nova, bonita, todos me galanteavam; hoje, que estou velha e cansada, ninguém me ajuda.
Virando-se para o crocodilo, continuou:
- O mundo é assim, leva-o!
O crocodilo entrou na água com Henda. Ao mesmo tempo. Apareceu, na margem do rio, uma lebre.
Henda então falou ao crocodilo:
- Espera. Eu vou chamar a lebre para ela ser também testemunha do que me fizeste.
Novamente Henda relatou à lebre o que se passara.
A lebre, surpreendida com a inocência de Henda, respondeu:
- Tu tens muita coragem. Como é que te atreves a ajudar o crocodilo?
Henda respondeu:
- Andei com precaução, porque, quando o transportei até ao rio, lhe amarrei as patas e as mãos.
- Não! Isso que tu me dizes, eu não acredito. Explica-me bem como é que fizeste.
O crocodilo tornou a pôr as mãos e as patas para trás e Henda amarrou-o.
- Como é que o carregaste? – perguntou a lebre
Henda arranjou uma rodilha e pôs o crocodilo à cabeça. Fez tudo isto sentado e só depois de ter a carga à cabeça é que se levantou.
Nessa altura, a lebre voltou a indagar:
- Então o teu pai nunca comeu crocodilo? E a tua mãe?
- Gostam, respondeu Henda, e costumam comer.
- Então carrega com ele e leva-o para casa, insistiu a lebre, e terminou:
- quem procedeu como o crocodilo é a paga que merece.
É bem verdade que a sagacidade domina a força
eheheheheheheheheheheheheheheh

Sanzalando em mc

Ânforagrafic

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24 de setembro de 2006

05 - Estórias no Sofá - Num Bairro periférico - 4 de 4

André, no caminho, se desviou e foi até ao carvoeiro matar as sedes. Abriu o envelope e ficou a saber, assim num soletrar de quase letra na letra que a carta era uma carta dirigida ao seu falecido pai e que o Zeferino era o fiel transportador. Na carta a mãe muito chorosa nos seus erros ortográficos e gramaticais, lá ia dizendo que estava farta de aturar os patrões da cidade que eram muito mais bons que ele, porém nunca estavam satisfeitos com as limpezas pois todos os dias tinha que limpar as mesmas coisas, que os filhos eram uns vadios que iam todos os dias para a cidade e voltavam com os bolsos mais vazios que até pareciam tinham furo, mas que ela cuidadosa lhes via e se fosse lhes punha linha, pobres mas não rotos não senhora. Que ela é que tinha de fazer as coisas todas e dar dinheiro para os vícios das crianças. Que ela assim não aguentava e qualquer dia lhe acontecia como a ele e morria assim falecidamente num repetente.
André foi para casa e fez uma coisa que não fazia faz muito tempo, pensar o que fazer com aquele carta. É verdade que estava a sentir remorso, mas não podia nem devia fraquejar assim num dia para outro.
Toda a família acompanhou o cortejo fúnebre do Zeferino. André aproveitou ter acordado cedo para pensar mais no assunto. Não chovia e pelo caminho ninguém ia reparar que ele estava a pensar.
Os dias foram passando até que um dia e algumas leituras de cartas e papeis escritos pelo pai, depois André tinha a solução.
Mariana chega a casa, vindo da cidade da casa onde limpava todos os dias as mesmas coisas e vê no correio uma carta escrita com a letra do marido falecido. O coração hesitou que quase deitava Marina no chão. Ela começo a ler numa difícil soletração de uns erros gordos que ali estavam e conseguiu ver que lá no outro mundo onde estava Antero, tudo era um mar de rosas. O inferno era mesmo aqui em baixo, que ela não devia nem se preocupar com as crianças que eram uns bons miúdos mas cansados de trabalhar e com a idade isso podia melhorar. Ela não conseguiu ler mais porque acabou de morrer falecidamente, imitando o Antero uns tempos lá para trás.Nunca mais ninguém soube de André e seus irmãos que após o enterro da mãe resolveram ir viver na cidade e nunca mais foram vistos no bairro pobre virado para o rio e para o mar.

Sanzalando

Noturno de Fão

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23 de setembro de 2006

05 - Estórias no Sofá - Num Bairro periférico - 3 de 4

Um dia, um vizinho pescador, que rondava a idade de Antero também morreu. Esse sabem foi de coração. Não foi só de morte falecida. Esse tinha razão para ter morrido. Morreu na cama do hospital porque o coração se cansou de ir todos os dias enfrentar as ondas e de ver os peixes a se reduzirem no pequeno barco.
Velório mais composto que o de Antero se é que se pode fazer comparações nestas coisas de funerais e afins.
A família de Antero compareceu em peso. Mas ao pé do morto falecido do coração só foi mesmo a Mariana. Que interesse tem ir ver o Zeferino ali frio e morto, parece foi o que pensaram os cinco galfarros, mais vivos de corpo e de maneiras de gente da cidade.
André, o mais velho dos filhos de Antero ficou na porta da velha capela a observar a mãe que se ia despedir de Zeferino. Lágrimas muitas mas menos gritos do que quando foi o Antero na mesma excursão. Aí André viu que a mãe, quando se baixou parecia ia dizer um segredo ao morto, deixou uma carta lá perto da cabeça falecida. Mas o que é isto que os meus olhos estão a olhar, terá ele pensado. Coisa que não fazia muitas vezes, diga-se. A curiosidade foi enchendo dentro da cabeça parecia queria explodir como pote de barro. Resolveu também ir se despedir de Zeferino. Afinal ele às vezes lhe pagava uma ou outra bejeca lá no velho carvoeiro, merecia este sacrifício. Disse um segredo na orelha do Zeferino, quer dizer, parece foi dizer, mas só tirou mesmo o envelope que rapidamente escondeu no bolso das calças.
Como o funeral era só mesmo na manhã do dia seguinte, foram para casa descansar que não eram família para estar ali a guardar o corpo toda a noite.

Sanzalando

Átrio Nulo

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22 de setembro de 2006

05 - Estórias no Sofá - Num Bairro periférico - 2 de 4

No ciclo natural da vida, Antero um dia morreu. Só se sabe que foi de morte falecida. Ninguém lhe conheceu doença ou lhe ouviu tristezas da vida que toda a gente lhe sabia. Sentado no velho carvoeiro do bairro velho virado para o rio ele partiu e deixou o corpo. Deixar o corpo para os outros lhe enterrarem A tristeza invadiu o bairro e várias estórias foram aparecendo. Morreu de tristeza porque os filhos isto e aquilo, vão na cidade e não fazem nada e o pobre velho é que tem que aguentar. Morreu porque já não se sentia com força para ir ao mar mas tinha vergonha de desistir, porque homem que é homem não desiste. Se tivesse ao menos um dos filhos, todos rapazes e de bom corpo, a lhe dar uma ajuda, etecetra e tal. A certeza certa foi que Antero completou o ciclo da vida e morreu falecidamente.
Com os parcos bens juntados pela família mais chegada lá se tratou de um funeral modesto. Para ir a enterrar também não era preciso gastar dinheiro que não tinha. Mariana, mulher de Antero, mais virada para as coisas da cozinha e do falar de janela a janela, com uma divida grande à desenvoltura foi ajudada pelo irmão e observada pelos filhos. Estes não podiam nem mexer porque nem sabiam bem o que era isso. Só sabiam mesmo era ir à cidade depois de almoçar o almoço de uma casa pobre e voltavam era noite cerrada que horas não tinham. Mãe e tio a fazer as coisas numa mistura de lágrimas e gritos e os cinco safardanas que nem 21 anos ainda tinham só olhavam, vestidos nas suas roupas de bangar parece é domingo.
O funeral correu sem incidentes. O falecido foi a enterrar no meio das lágrimas e gritos estridentes, coisas habituais nestas coisas de funerais e afins. E também perante o olhar impenetrável dos cincos filhos de Antero. Qual deles mesmo o que menos mexia não houve ninguém que dissesse. Acho ficaram empatados.
Depois de uns dias de choro e muitas lamentações Mariana arranjou um emprego na casa de uns senhores na cidade e todos os dias mal nascia o sol, mesmo naqueles dias em que o sol não nasce, apanhava o autocarro e ia limpar a casa imaculadamente limpa dos senhores da cidade que têm muito que fazer e não têm tempo de fazer essas coisas. Todos os dias Mariana fazia a mesma coisa. Todos os dias chegava a casa e ainda ia fazer o mesmo, além de fazer comida e a deixar preparada para os cincos filhos que continuaram tal e qual eram antes, quando ainda tinham pai.Mariana se lamentava de ver aqueles corpos matulões virados para coisa nenhuma. O barco se estragava, não sentia água se não quando chovia. Mas nenhum estava mesmo virado para o rio e para o mar. Estavam de costas voltadas para eles. A vida deles era a vadiação na cidade. Tudo o resto era conversa mole que não fura os ouvidos daqueles durões.
Sanzalando

Sem Título

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21 de setembro de 2006

05 - Estórias no Sofá - Num Bairro periférico - 1 de 4

Chove. Mesmo que não molhe parece que chove. Esta cidade de granito é assim, se não chove parece e pronto, não tem nada a fazer-se mais. O rio corre em baixo pachorrentamente sob as pontes ou metálicas ou de betão. Mas o rio corre para o mar e quando há temporal ele também corre para dentro das ruas da cidade. Esta cidade é assim. À frente dela está a crescer outra cidade um tudo quanto nada diferente. Mas estando assim num frente a frente nem se podem ver. O que vale é que o rio não deixa que as duas cidades se aproximem. Mas as gentes são iguais, quer a gente queira quer não.
Como todas as cidades também esta cidade tem os seus bairros, com as suas gentes e suas culturas, alguns mais fechados que prisões dentro de si mesmados. Cidades dentro da cidade.
Num bairro assim mais pobre dos bairros pobres, esta gente vive da pesca. Só conhecem o bairro, o rio e o mar. Nunca vão à cidade grande. Ninguém sabe porquê e não vou ser eu que vai descobrir isso.
Antero era pescador e morava nesse bairro desde que o avô dele, primeiro da família que ele sabe que existia, também nasceu aí. Antero só foi uma vez à cidade num dia de S. João. Mas nunca se lembrou que lá tinha ido porque veio de lá já assim a dar para o outro lado, num ver em triplicado e selado de consciência toldada pelos vapores etílicos que todos os seus poros emanavam. Foi a única vez que foi à cidade e não se lembrava. Tudo o resto que ele sabia da cidade era ouvido no pequeno rádio de pilhas que lhe acompanhava sempre, mesmo na faina no mar. Ele podia largar tudo, mas a sua grafenola portátil é que não desgrudava nunca.
Antero era casado e tinha, como não tinha televisão e não havia essa coisa de planeamento familiar uma catréfada de cinco filhos assim em escadinha que parece eram feitos numa chocadeira.
Todos os dias lá ia Antero para o mar. Todos os dias voltava com as suas estórias e algum peixe que vendia a quem lhe esperava no pequeno cais que existe no bairro, virado para o rio. Foram assim os tantos anos de Antero.
Sanzalando

Caracolando

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20 de setembro de 2006

04 - Estórias no Sofá - Recaída - 2

Alguém lhe perguntou por onde tinha andado neste tempo todo. Ele levantou um olhar de sonhador e com uma expressão de satisfação ameaçou um sorriso, mas não respondeu.
Que ia responder ele?
Que desde que saiu para ir comprar cigarros havia vivido todos os dias como se fosse o ultimo? Que tinha conhecido todos os bares, tabernas e botequins, boates e casas de alterne do país? Que fumou, cheirou e se injectou com tudo o que pôde? Que arranjou uma meretriz que o sustentou todo este tempo que esteve fora?
Não. Não valia a pena.
Pediu perdão, dizendo que tinha perdido a cabeça, começado a beber e corrigindo o dia anterior com uma outra bebedeira sempre maior que a anterior, pelo que se perdeu no mundo.
A mulher desconfiou daquela saudosa expressão de prazer, daquele silêncio enigmático. Sabia como ele era, conhecia a sua maneira de se encantar num à toa que até dava dó. Bobo como era, coitado, sabia que certamente se tinha engraçado com um decote, um bom par de pernas, um sorriso ou um olhar feminino. Mas lhe perdoou, como sempre lhe tinha perdoado as coisas mais pequenas que Jacinto já tinha feito antes.
Logo a vida voltou ao normal.
Com a vida normalizada e cheia de regra de nove horas e coisas que tal engordou novamente, ficou de cara corada, depois de arranjar emprego voltou a trabalhar, curou-se da tosse e até parou de fumar dum dia para outro.
Estava já tudo tão normal que a mulher já o atazanava pelas contas atrasadas que tinham para pagar, pela olhadela que ele dava para a mini saia da vizinha, pelos cambaleamenros no sofá da sala, pelo seu novo gosto de lavar o carro aos sábados e pelo futebol que assistia na televisão a todas as horas do dia, era só dar.
A vida tinha voltado ao normal naquela casa de um bairro periférico.
Até que numa noite, Jacinto apalpou o bolso vazio da camisa e resolveu voltar a fumar.
E sabes como é? Um vício puxa outro, que puxa a outro, outro e outro... Saiu para comprar cigarros e não voltou mais.
Sanzalando

Verbo Teatro

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19 de setembro de 2006

04 - Estórias no Sofá - Recaída - 1

Era a casa de Jacinto. A noite tinha caído faz pouco tempo, no bairro da periferia onde vivia Jacinto. Era numa noite destas como outra qualquer, num sítio destes como podia ser num outro sítio qualquer. Depois do jantar, Jacinto num gesto carregado de vício, apalpou o bolso da camisa, revirou os bolsos das calças e procurou em todos os cantos da sala, onde assistia ao fim das notícias e vazio encontrou o maço de cigarros que tanto procurava. Virou-se para a mulher e lhe disse numa mistura de satisfação e despreocupação que ia sair para comprar os cigarros que se tinham acabado.
Na verdade verdadeira é que não voltou mais. A tabacaria era ao virar da esquina e o bar uns quinhentos metros rua abaixo, se é que uma rua plana pode ter alto e baixo.
As horas foram passando na sua imperturbável cadência.
A esposa do Jacinto, noite cerrada, cansada de lhe esperar o procurou no bar, que a tabacaria fazia horas que estava fechada, no bairro todo, nas redondezas do bairro periférico. Nada de Jacinto. Ninguém sabia e ninguém sequer lhe tinha posto o olho em cima. Aqui o Jacinto nunca vem de dia quanto mais vir de noite, foi o que lhe disseram. Resolveu ir na esquadra da polícia. Nada e não tinham tomado conta de nenhuma ocorrência nesta noite de calma nos bairros periféricos. Da polícia alguém tem a brilhante ideia de telefonar para os hospitais, para todos os bares que pudessem estar abertos àquela hora tardia da noite, todos lugares possíveis e imaginários foram procurados via telefone.
Nada, nem rasto nem pegada.
Por vários meses e nada, a mulher de Jacinto lhe procurou.
Deve ter levantado voo porque não havia um só olho que o tivesse visto. Foi dado como morto, mesmo sem funeral com corpo a enterrar.
A mulher e os seus dois filhos se fizeram à vida como puderam, sem ele. A mulher começou a trabalhar e com dificuldade lá foi criando os dois filhos pequenos que iam crescendo órfãos de pai.
Passaram-se dois natais e mais uns quantos dias que já ninguém contou depois de um luto cerrado e eis que ele aparece, com cara de um quase falecido, fato novo porém carregado de nódoas e amarrotado como uma folha de papel usada e deixada num lixo qualquer. Muito magro que mais parecia uma radiografia do que o Jacinto de outrora, de olhos cavados mostrando noites mal dormidas e com uma tosse seca, persistente e irritante.
Sanzalando

LUZ

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18 de setembro de 2006

03 - Estórias no Sofá - Criação do Amor

Jeremias cresceu criando um mundo. Um mundo que não era este que eu uso e abuso. Era um mundo que só existia mesmo na cabeça dele.
Os dias foram passando e ele lá ia inventando coisas novas para pôr no seu mundo. Esse mundo foi crescendo segundo as coisas que ele criava.
Jeremias criava inventando coisas novas e o seu mundo foi crescendo nesse ritmo.
Olhava as coisas sem nenhuma curiosidade, vivia a vida sem vontade e o nosso mundo era apenas o espaço onde ele descansava os pés.
Quando ele pensou em criar as coisas para não pisar no outro mundo, que é o nosso mundo, pensou em asas e sapatos. Mas isso não tinha graça, existia neste mundo. Queria algo tão grande, tão forte, que lhe fizesse levitar.
Um dia ele inventou o amor e nem pensava em amar.
Nunca pensou em ter o coração a bater mais forte, nem em contar coisas novas para os amigos, nem se quer em dormir abraçado.
Queria mesmo era só não pisar no mundo e até voar, mas sem asas.
Quando ele inventou o amor era um dia comum, desses que não entram para história e nem são comemorados em qualquer roda de amigos e também não era feriado desses que a gente nem faz ideia porquê que é feriado. Se chovia, não se sabe, mas que não fazia sol isso era quase certo. Para Jeremias não havia sol. No seu mundo o futuro e o passado conversavam animadamente, pois nada impedia que eles fossem amigos.
Quando ele inventou o amor, nem percebeu o que havia criado, nem onde se tinha metido.
O futuro zangou-se com o passado e nunca mais se falaram. O presente virou mensageiro, mas se falasse mais de um do que de outro, havia briga da grossa.
No seu mundo estavam todos os corações carregados de poetas sedentos por ter o que escrever.
Quando ele ficou sem palavras, percebeu o que tinha criado, no que se tinha metido.
Nome para esta sua criação ainda não tinha e a lua cheia rapidamente gritou alto e bom-tom a palavra Amor.
Quando ele percebeu o amor, seus pés já não pisavam o mundo, o seu coração já não batia em compasso ritmado e cadência certa, as palavras lhe faltavam na voz e sobravam nas mãos. Os poetas comemoraram e foram atrás de rimas com amor.
Quando ele sentiu uma falta e a uma lágrima se segui outra, gritou: Dor.
Mas não rimava. Doía, mas não rimava. Saudade rimava. Mas Jeremias não gostava. Poetas iam gritando palavras para definir o amor, ele ia recolhendo as lágrimas para sentir o amor, a lua era cortejada para exibir o amor.
Quando ele inventou o riso dela e lhe viu um olhar meio de lado, sorriu: Rima!
E o amor passou a rimar perfeitamente com aquele riso

Sanzalando

Origem

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17 de setembro de 2006

02 - Estórias no sofá - Uma morte anunciada - 4

A morte muda de voz e me pergunta se eu não me chamo Arnaldo. Lhe respondi que não. Meu nome é Serenando. Serenando desde que fui baptizado, pelo menos é assim que eu sempre me lembro de como me chamam. Arnaldo é o vizinho do lote 16.
Aí olho nos olhos da minha companheira de tantos anos já com um receio cerebral a ferver no emaranhado de ideias e revoluções convulsivas e, quando olho, num repente para a morte, lhe vejo uma cara de envergonhada e lhe ouço numa voz doce e meiga a me dizer para a gente esquecer de tudo o que aqui tinha acontecido, desculpando-se com a escuridão que a levou a bater na porta errada. A morte sai sorrateiramente do quarto e caminha para a cozinha onde se senta sobre a mesa, frente ao relógio de parede. Volta ao quarto no exacto momento que me vê a disparar uns quantos tiros no peito da minha companheira de tantos anos. Me vê a sair dali com a arma e se senta na minha cama, ao lado do corpo moribundo da minha companheira de tantos anos, e lhe diz, novamente com a voz cavernosamente rouca, que fora a única maneira que encontrou para a levar, pois com a vida saudável que ela levava nem daqui a 100 anos lhe conseguia. Quando acaba de lhe falar estas coisas ouve mais uns quantos tiros, vindos da casa ao lado. Levanta o dedo em riste e diz que o Arnaldo deve estar já pronto também, a tempo de os três apanharem o comboio das sete para o inferno.
Foi neste exacto momento que acordei ao som do despertador.
Sanzalando

Dali

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16 de setembro de 2006

02 - Estórias no Sofá - Uma morte anunciada - 3

Abri com cuidado a porta do quarto. Como se isso fosse importante num momento destes. Mas a educação não se perde em momento algum. Minha companheira abre um olho e me pergunta com voz enrolada no sono o que é que se estava a passar.
Eu lhe disse para ter calma. Logo eu que estava sem calma nenhuma.
Ela me perguntou as horas, continuando a não a abrir mais que um olho, como se o mais importante fosse mesmo saber quanto falta ainda dos cinco minutos que ela me deu.
Minha voz pouco audível começou a se ouvir dizendo que estava ali a pé porque a morte me vinha buscar, me tinha apanhado na cozinha e que me dera cinco minutos para me despedir, assim resumido para que o tempo não andasse.
Aí, ela, arregalou os dois olhos e olhando por cima dos meus ombros viu a cara assustadoramente cavernosa que estava na porta, de olhos fixos na gente, como que a querer saber se eu pedia mesmo desculpa de todos os erros cometidos na vida em conjunto. Além de feia e fria é desconfiada o raio da morte, pensei eu sem me atrever a pensar em voz alta. Tem vezes que sabe bem pensar mesmo só para dentro.
Lá consegui dizer que a amava muito, como nunca ninguém tinha amado ninguém. No balanço aproveito para lhe dizer que cometi uns errozitos, com a Márcia, Juliana, Serafina e com a vizinha do lote 16. Esta tinha sido a minha última traição.
Neste instante a morte me interrompe com toda a sua voz e me pergunta se a última traição não tinha sido com a vizinha do lote 15, ao mesmo tempo que saca do bolso do seu sobretudo preto um caderninho amarrotado de muitas consultas feitas, que folheia numa rapidez de quem está compressa. Não foi a do lote 15? me pergunta mais uma vez, confirmando o que estava escrito no caderninho. Eu lhe respondi que não foi traição no lote 15 porque essa era esta minha mulher e isso não pode ser considerado traição.
Até ao momento a minha companheira se mantém num silêncio sepulcral.


Sanzalando

As ervas são altas

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15 de setembro de 2006

02 - Estórias no Sofá - Uma morte anunciada - 2

Posted by Picasa Mas essa cara cavernosa me diz assim num repente que eu morro às sete da manhã? Que grande cara de pau me saiu essa cara cavernosamente feia. É preciso ter lata e ser descamisado de sentimento. Eu podia ter um enfarte com uma notícia dessas dada assim com toda aquela lata e sem preparação preventiva, que me levaria a morrer uns instantes antes da hora marcada.
Mais uma vez olhou para mim e encolheu os ombros, se tintando completamente para mim.
Senti um arrepio. O meu sangue congelou nas veias e nas artérias apenas corria assim um fio de ribeiro em tempo de seca de sangue descolagulado, só para conseguir manter-me de pé.
Grande lata, repeti eu em voz sumida de um quase falecido.
Mas a voz roucamente cavernosa continua a sua lenga lenga e me pergunta se eu sabia o que tinha feito na vida, se tinha consciência dos dias gastos em coisas nenhumas, dos erros que tinha cometido, das asneiras e abusos. Me enchi de coragem que fui buscar não sei onde e lhe perguntei porquê logo para o inferno, me esquecendo na ignorância da pergunta que me fez. Mas ela não me ligou pevide e continuou no seu tom monocórdico a enumerar uma série de erros.
O remorso me foi invadindo o que restava da alma, o medo começou a ocupar o meu lugar. Eu pensava em lhe dizer que me desse tempo para me desculpar perante algumas pessoas, refazer umas outras coisas, renascer noutra vida que não a que eu tinha escolhido.
Mas a morte continuava a recitar na sua voz cavernosamente rouca a lista que parecia tinha decorado. Horas e datas que nem davam tempo para eu conferir. Continuava a lenga lenga. Se fosse em papel já a cozinha estaria a abarrotar deles até ao tecto.
Eu pensava em como podia negociar um adiamento, ganhar um tempo. Na verdade não me apetece morrar agora. Mas na carola baralhada só me ocorre lhe perguntar se me posso despedir de alguém? perguntava eu de forma tremula, num bizarro real, caracolando os meus pensamentos.
Ela parou de recitar a lista e, com olhos esbugalhados, me disse que me dava cinco minutos para as despedidas. Cinco minutos só? saiu-me assim da boca que nem um pestanejar.
Só! afirmou ela num perentório que nem deu para lhe respirar o ar direito.
Fui ao quarto para me despedir da minha companheira de tantos anos. Nos cinco minutos que me foram dados não dava para ir mais longe. No caminho a morte ainda me falou para eu não esquecer de na hora da despedida de pedir nela as desculpas por todos os erros que lhe cometi.
Ainda tive para lhe perguntar se eram mesmo necessários os pedidos de desculpa, pois eu não queria perder os cinco minutos em lenga lenga. Mas lhe olhando na cara achei por bem nem abrir mais a boca.

Rodas

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14 de setembro de 2006

02 - Estórias no Sofá - Uma morte anunciada 1

Só te conto que tenho dormido mal. Não sei se é por causa do factor emocional de não caminhar ou estar horas a ver o zulmarinho.
Como desconsigo dormir assim tudo numa seguida, eram para aí umas quatro horas da madrugada e eu fumava um cigarro na cozinha, quando ouvi bater na porta. Fiquei apanhado numa surpresa pela hora tardia. Assustado abri a porta sem pensar muito.
O meu maior espanto foi lhe olhar nos olhos e ver que era a morte que me vinha buscar. Lhe olhando na cara cavernosa não dava para enganar, mesmo que eu fosse cego.
Numa voz rouca e abafada, parecia que tinha engolido uma almofada ela me disse que eu devia estar era a dormir, lhe ia facilitar a vida, pois assim comigo acordado ia ter que me contar uma estória, ter uma trabalheira enorme a me convencer a lhe acompanhar e coisas e tal. Ao mesmo tempo que me fala assim roucamente, caminha para o frigorifico, olha e reolha como se estivesse a fiscalizar o conteúdo e prazos de validade. Mas não pára de falar no leite desnatado, margarina com fibras, frutas e legumes, carne de frango e outras coisas que dizem que são saudáveis e que estão por ali arrumadas. Me pergunta se tudo aquilo ali é que é comida que eu como. Tento recuperar a voz e sussurrando digo que aquilo é saudável. Ao mesmo tempo, para não perder o fôlego lhe pergunto o porquê daquela visita assim, naquela hora e neste dia. Eu queria entender mesmo, não era ganhar tempo. Fechando o frigorífico com força, aquela cara cavernosa me olha no cigarro que se queimava sem ser fumado, ao mesmo tempo que encolhe os ombros. Sabes, disse-me ela na sua voz rouca e abafada, não tens que entender nada. Eu cumpro ordens e não há outra volta a dar.
Escusas de fazer essa cara de já falecido pois ainda faltam umas horas para o comboio do inferno passar.
O comboio é só mesmo às sete da manhã.
Que até me lembrei duma canção.
Sanzalando

Quando me dispo é verão

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13 de setembro de 2006

01 - Estórias no Sofá

Vamos fazer mais como então? Se continuo aqui na beira do zulmarinho, acabo por ficar com uma doença, na melhor das hipóteses uma pneumonia, na pior uma psicose melancólico-depressiva.
O melhor mesmo é voltar a sentar no sofá, ver o mundo correr num pequeno ecran, que não é LSD mas que parece isso parece.
O raio do frio parece que está a chegar assim num repente desavisado e aqui não está mesmo confortável para te falar. Nem te vejo, ó sombra colada a mim no teu silêncio de ouvires-me falar com ouvidos de atenção das saudades do lado de lá da linha recta que é curva.
Vamos para o sofá. Não vamos precisar da lareira ainda, mas vai-nos faltar mesmo é o marulhar que me segreda as estórias verdadeiras, mesmo as que não existiram.
Vou tentar falar-te com o mesmo gosto, com a mesma emoção, mas tenho a certeza que não me ouvirás com tanta atenção como me ouves aqui. Sempre se pode olhar mais longe, sempre a gente pode se distrair com uma onda diferente das outras, e mais coisas que aqui ao ar livre sempre podem acontecer. Lá, confinados no pequeno ecran, a gente só vê e ouve o que eles querem que a gente veja ou ouça.
Mas vamos fazer então mais como? Vir caminhar aqui, no tracejado que separa o zulmarinho da areia de mil cores assim de casaco e outras coisas que fazem a gente parecer mais gordo?
Acho mesmo que aqui a gente vem só numa de fugir no tempo de ouvir uma mukanda ou o cantar de uma kianda, depois a gente corre no sofá e fala de coisas boas, mesmo se tiver que desligar o ecran.
Sim, porque eu não ia nunca conseguir viver sem olhar essa azul desse zulmarinho que termina aqui mas começa lá onde pára o meu coração. Eu desconsigo largar-me desse mar de lágrimas que nos separa mas nos liga num interminável sonho de viver, coração com coração.
Anda, vamos caminhar através do nosso silêncio enquanto não arrefece mais assim insuportável e descomodamente. Vamos caminhar e apanhar assim como se fosse a última brisa com perfume de maresia.

Sanzalando

Nenúfares

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12 de setembro de 2006

Intimidades (8)

Tem gente, que nem eu, que se vai acostumando com as rotinas, vai entrando nos funis da vida e se espremendo até ficar assim num modo de ser quase nada que nem desconfia. Fica indo mas não vai, sem reflectir bem reflectido no que afinal está a acontecer. Só quando alguém bate com as botas uma na outra é que a gente dá uma olhada em volta com um olhar vazio e desinteressado. E esse olhar, ainda por cima, dura pouco, um quase nada. É que o tempo é curto e o mundo já aprendeu que filosofar, só sabendo alemão ou coisa parecida. Então, por ser assim, a gente vai deixando um dia nascer atrás do outro, sem perguntar nada de coisa nenhuma. E também, ia perguntar depois para quem mais? Não há nunca ninguém para dar uma resposta pequena que fosse sobre uma dúvida por mais pequena que seja. Daí que tem gente que vai inventando leitura de cartas, signos e outros mapas astrais e essas coisas todas para ver se descobre um assim assim qualquer.
Descobre, qual quê, qual nada.
Eu, que fico aqui caminhando num falar-te constante sobre essas coisas todas do meu universo, envolto nas minhas minhocas cerebrais, nos sonhos e outras aventuras de além mar, qual cabeça de vento fervendo num caldeirão de ideias que fica num morno que nem aquece, ainda não descobri o meu rumo, o meu norte que fica para os lados do sul numa rosa dos ventos desorientada.
Eu, que te conto as minhas intimidades, te digo que em cada dia que nasce me apetecia nascer e crescer outra vez, sempre diferente numa igualdade de imaginação e parlação, desnecessitando de saber o bioritmo, o signo e outras ajudas desajustantes, me encontro na fase vazia de rumo, levando no cangaço as rotinas de funis afunilados, sorrisos apagados, azias e outras maleitas desfeitas nos pedaços de sonhos que esvoaçam ao vento.
Sabes que ouvi de fonte límpida e potável, que o universo anda a querer se expandir. E para onde dá mais para ele ir? Para onde mais o universo se vai espalhar? Pois se eu aprendi que o universo é infinito, ele vai fazer mais como? Então daria para ele ser mais infinito do que o infinito?
E eu aqui, espremido no funil da vida e o universo cheio de mundos, de sóis, de estrelas, buracos negros e sabe-se lá mais o quê, se esparramando mais pelas bandas de lá?
E eu aqui carregando sonhos num curvado corpo cansado de ultrapassar os funis desta vida lutando para não morrer sem viver o meu sonho, e o universo vem me dizer que é um crescimento constante, que até me dá vontade de ir ver. Ir ver para crer. E se fosse mesmo verdade que o infinito existe e que anda querer ser mais infinito, eu daí sim desistia de tudo e passava a ser só um existe mais no universo, um simples e singelo pedacinho de infinito.
Mas a coisa pior é que a mona ferve num fervilhar constante que fico a querer pensar, esquecendo o trabalho que isso dá.
Na verdade existe uma teoria que diz que, se um dia alguém descobrir para que serve o Universo e porque é que ele está aqui, ele desaparecerá instantaneamente e será substituído por algo ainda mais estranho e inexplicável.
Vais ver que isso já aconteceu.
Te mereço uma birra estupidamente gelada e a tua companhia para ver o por do sol neste final de zulmarinho.
Sanzalando

Tá na hora...

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11 de setembro de 2006

Cocktail de amor directo

Em cada foto que te vejo sinto o teu perfume como se fosses uma flor, um malmequer, uma rosa.
Em cada pensamento meu te vejo a sorrir-me com o sorriso inocente de quem me deseja de forma ardente.
Meus olhos buscam-te num nistagmo interminável.
Porque será que eu tenho cinco sentidos se o meu sentido és tu?
Desperdício?
Nunca!
Amar-te-ei sempre desta forma violenta se necessário for.
Amar-te-ei sempre mesmo que seja na ausência.
Amar-te-ei sempre mesmo que seja um sonho, uma utopia.

Está certo, hoje não te falei com fintas e bassulas e outras formas de te galar. Fui-te directo ao âmago. Porquê?
Olha porque sim.
Deu-me hoje um cocktail de amor directo.


Sanzalando

Quem se lembra?

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10 de setembro de 2006

Pôr do sol de esperança

Olha só o sol se deitar do lado de lá da linha recta que é curva. Está encarnado parece é fogo, tal como o fogo que está no meu coração, à espera de poder libertar um dia destes, numa altura qualquer destas.
Desde os tempos que te falo aqui, no ritmo do marulhar, no sabor salgado das lágrimas que não choro mas que são gostas desse zulmarinho salpicadas na minha cara, na mistura de perfume de maresia e do suor do lutar contra ventos e marés, nunca me ouviste falar em desistir.
Se, assim por acaso, isso aconteceu foi mesmo antes de eu me levantar de uma qualquer queda temporária. Desistir só poderia acontecer se eu não me levantasse logo logo. Tu sabes que eu te falo sempre a verdade mesmo que não tenha acontecido e se isso alguma vez te possa ter dado a entender foi mesmo um lapso na voz que enroucou por falta de lubrificante estupidamente gelado.
Assim fica a saber que desistir só mesmo depois de eu não conseguir levantar depois de uma queda. Tenho quedas mas me levanto pareço sou boneco de borracha.
Mas olha bem nessa cor de fogo e vê se consegues ver uma mukanda trazida pela corrente. Se por acaso a vires não te esqueças de gritar com a tua voz que eu posso estar assim distraído e não olhar nos teus olhos.
Tu sabes que eu escolho os meus sonhos e estes se resumem a um quinto dos dedos de uma mão.
A minha escolha que eu sei também é a tua é viver naquele amor que aqui te tenho falado de forma quase parece é doença mas que mais não é que um rumo. O rumo da minha, da nossa, felicidade.

Sanzalando

Ao olhar uma Opala

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