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21 de setembro de 2006

05 - Estórias no Sofá - Num Bairro periférico - 1 de 4

Chove. Mesmo que não molhe parece que chove. Esta cidade de granito é assim, se não chove parece e pronto, não tem nada a fazer-se mais. O rio corre em baixo pachorrentamente sob as pontes ou metálicas ou de betão. Mas o rio corre para o mar e quando há temporal ele também corre para dentro das ruas da cidade. Esta cidade é assim. À frente dela está a crescer outra cidade um tudo quanto nada diferente. Mas estando assim num frente a frente nem se podem ver. O que vale é que o rio não deixa que as duas cidades se aproximem. Mas as gentes são iguais, quer a gente queira quer não.
Como todas as cidades também esta cidade tem os seus bairros, com as suas gentes e suas culturas, alguns mais fechados que prisões dentro de si mesmados. Cidades dentro da cidade.
Num bairro assim mais pobre dos bairros pobres, esta gente vive da pesca. Só conhecem o bairro, o rio e o mar. Nunca vão à cidade grande. Ninguém sabe porquê e não vou ser eu que vai descobrir isso.
Antero era pescador e morava nesse bairro desde que o avô dele, primeiro da família que ele sabe que existia, também nasceu aí. Antero só foi uma vez à cidade num dia de S. João. Mas nunca se lembrou que lá tinha ido porque veio de lá já assim a dar para o outro lado, num ver em triplicado e selado de consciência toldada pelos vapores etílicos que todos os seus poros emanavam. Foi a única vez que foi à cidade e não se lembrava. Tudo o resto que ele sabia da cidade era ouvido no pequeno rádio de pilhas que lhe acompanhava sempre, mesmo na faina no mar. Ele podia largar tudo, mas a sua grafenola portátil é que não desgrudava nunca.
Antero era casado e tinha, como não tinha televisão e não havia essa coisa de planeamento familiar uma catréfada de cinco filhos assim em escadinha que parece eram feitos numa chocadeira.
Todos os dias lá ia Antero para o mar. Todos os dias voltava com as suas estórias e algum peixe que vendia a quem lhe esperava no pequeno cais que existe no bairro, virado para o rio. Foram assim os tantos anos de Antero.
Sanzalando

3 comentários:

  1. Essa prosa me fez lembrar as cidades de pescadores do interior da Bahia, um estado aqui do Brasil. Os pescadores repletos de filhos e a herança é essa mesmo. Ser pra sempre pescador...

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  2. Contar contos, isso não faz mal…só viver é que faz mal…roçar pela vida e cada gesto suspende um sonho mas neste instante não tenho sonho nenhum, mas como é-me agradável pensar que o podia estar tendo…
    Abraço virtual
    Para a próxima, prometo!!!!!

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  3. Kafé:
    eu tento sempre localizar-me em qualquer lugar do mundo, umas vezes sou capaz outras não. Aqui também pode ser Angola, Portugal, não sei se na China também pois esta não lhe conheço-

    MC:
    Procuro viver contando contos. Assim espero que a virtualidade se materialize do mesmo modo que os meus sonhos se realizem.
    Prometido é devido!

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