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10 de outubro de 2006

09 - Estórias no Sofá - Uma estória de Miserela - 2 de 3

O gelado esparramou-se no chão quando tomei conta que não estava ninguém dentro do carro. Nem mãe nem projecto de filho. Bem, este também não podia estar pois ainda estava dentro da barriga dela, mas naquele instante não consegui ver claro o que me corria dentro da cabeça.
Naquele instante tive a plena certeza que não tenho o sexto sentido. Não seria preciso procurar à volta para confirmar que tinham dado sumisso. Tinham sumido mesmo.
Foram dias de perguntas, de voltas. Colei cartazes em tudo o que era loja, poste ou árvore. Tudo dolorosamente inútil. Falei com conhecidos e desconhecidos. A minha família me olhava e emudecera porque nem uma palavra me era dita, nem um olhar me era dirigido. Parecia tinham desaparecido, tal como todas as folhas A4 que eu tinha colado com o rosto lindo dela.
Tudo parecia perdido. Eu, Gervásio estava velho. Acabado assim num tempo de comprar um gelado. Acabado e sem descendência.
O germe da resignação germinava no meu interior, bolorando a desarrumação, saturando o amontoado de ideias vagueantes e tudo já perecia perdido.
Cheguei do trabalho cansado, deixei água a correr na banheira e me preparei, rodeado do silencioso apartamento, para tirar a minha angustiada barba de três dias.
Esguichei uma boa dose de espuma para a cara, raspei a gillette sobre os pelos esbranquiçados da cara, mirando-me ao espelho a ver-me velho e acabado num envelhecimento precoce.
No fundo do reflexo percebi a figura da minha mulher. A gillette caiu-me da mão e congelei-me por instantes. Pateticamente tentei alcançar o reflexo dela. Claro que só tive como resposta o toque frio do espelho gelado.
Foram apenas alguns segundos, logo o espelho reflectia apenas a porta da casa de banho, mas foi o suficiente para me perturbar para um quase sempre.
Daquele dia em diante, ela passou a visitar-me através dos espelhos cuidadosamente espalhados por mim ao longo da casa. Na mesa, em cima da televisão, na cabeceira da cama, jaziam pequenos postais de vidro, trazendo de volta o que eu tinha perdido. Refém daquele pequeno universo, minha mulher surgia sempre com um olhar resignado e doce, cheio de saudade. Era este o reflexo que eu via. Saudade doce.
Já me andava a acostumar com a situação. Eu e os meus espelhos. Os meus espelhos e eu.

Sanzalando
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