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22 de novembro de 2006

18 - Estórias no Sofá - Na senda de JB - 1 de 2

Ser pretensiosamente famoso tem suas vantagens e desvantagens.
Antero trabalhava no centro da cidade grande e sempre foi um exemplar funcionário. Mesmo nos dias mais quentes de outras eras lá estava ele pontualmente no seu local de trabalho. Depois dalguns camaradas descobrirem que atrás daquele rosto tranquilo do senhor Antero, morava o Velho que escrevia no jornal clandestino feito num velho stencil, se lhe acabou o sossego.
- Senhor Antero, o senhor é mesmo o Velho? lhe passaram a perguntar muitas vezes.
- Limite-se a cumprir seu trabalho. Tenho 40 anos e velho é quem você sabe que eu estou a pensar! respondia ele com a irritação na flor da pele, vendo-se-lhe todas as veias a marcarem o território num relevo sob a pele.
- É ele mesmo! diziam de seguida, como que a lhe irritar ainda mais, como que a pôr gasolina na fogueira.
O mujimbo se espalhou por todo prédio e alguns arredores que ele até hoje ainda não sabe quem foi o corno que descobriu isso e pior quem podia ter desconfiado deste sempre pacato homem que ninguém lhe conhecia vício ou degrau descido ou subido na vida sem ter uma mão a segurar no corrimão.
Mas conversas mesmo longe de Antero ele era o tema. Não podia ser, diziam uns. Sabes que em cara de santo não lhe vês a alma, diziam outros.
Dentro da cabeça de senhor Antero ferviam pensamentos escaldantes, deprimentes, ofegantes, insultuosos. O que fervia mesmo era o medo. Se ali já sabiam, ou desconfiavam, de certeza que os OUTROS já tinham pastas e pastas sobre ele. Tá aqui e já se está a imaginar a viajar dentro de uma carrinha fechada para algures onde ninguém mais ia saber onde ele ia estar. Se é que estaria. Ele fazia o filme. Realizava e produzia, escrevia e actuava. Era o filme de uma pessoa só.
Mas na fachada ele continuava o senhor Antero. Quando lhe provocavam lá vinham as veias como a lhe saltar da cara, mas assim num repente voltava ao normal e até que parecia era surdo.
Na sua secretária, a meio de todas as manhãs chegavam muitas cartas. Umas lhe insultando, outras poucas, a lhe dizer para seguir em frente nas denúncias que fazia no stencilizado pasquim.
Assim, o anteriormente conhecido pacato senhor Antero, passou a ser conhecido e olhado com outros olhos. Quando estava no meio de gente que era a favor da causa dele, mesmo ele não sabendo que tinha uma causa, lhe olhavam com olhos de respeito e até tinha mulher que lhe passou a olhar quando antes nem lhe viam que ele estava ali. Mas no reverso do outro lado da moeda, lhe queriam linchar, mas para a sua sorte nunca passavam das palavras. Logo ele pensava que era bom ter aprendido a ser surdo., mesmo que as veias da cara lhe dissessem que ele mentia nessa surdez.
Nunca tinha sabido de política. Se havia política com toda a certeza lhe escondiam. Todos sabiam que ele ia dizer que não. Mas criticar o que ele achava que estava mal, isso ele era homem para criticar. Gostava de escrever e aproveitou a boleia de um amigo, que desaparecera no meio dos anos quentes, e faziam um jornal que era distribuído no silêncio da madrugada por algumas casas e escritórios da grande cidade, onde estivesse alguém que eles sabiam iam ler. Se havia esquema e eles tomavam conhecimento, Antero usando a sua prosa de Velho denunciava o esquema. E um dia, na casa esquemática, lá aparecia uma cópia do stencilizado pasquim. Claro que não tinha dia certo de sair. Mas que saía eles sabiam que ia sair. Quando o amigo se evaporou, ele manteve os nomes e duplicou o trabalho.

Sanzalando

2 comentários:

  1. "Nunca tinha sabido de política. Se havia política com toda a certeza lhe escondiam."... continuas inspirado!!! resumiste uma serie de linhas em meia duzia de palavras.
    SJB

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