recomeça o futuro sem esquecer o passado

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6 de novembro de 2006

15 - Estórias no Sofá - Desejo de ser artista - 1 de 3

Num daqueles pequenos apartamentos de dois quartos, num bairro feito para a classe média, abriga a sobrevivência. Não há lugar para se guardar sonhos, arte ou futuro. Mensalmente as contas são pagas no equilíbrio do elástico quase partido. Os sorrisos andam pálidos. Pela porta entra e sai diariamente uma chefe de família, que faz tempo esqueceu a capacidade de devolver um sorriso.
A artista sonhadora, de avental vai-se esmorecendo na lida da casa que não sonhou, pesadelando os sonhos de ser pintora de telas espalhadas um pouco por aqui e por ali, num acaso que significa dinheiro entrado.
O relógio de parede de madeira carcomida pelo bicho, esse mesmo, não se esquece de mostrar que o tempo avança, para não dizer que galopa.
As férias são trocadas por arrumações, num encontro marcado com o passado, na falta de verbas para as viagens de outrora.
As estantes outrora repletas estão agora cada vez mais enchidos de ar. As cartas relidas pela penúltima vez afugentam o medo de perder quem ela fora, quem ela gostava de continuar a ter sido. Os álbuns, com amarelecidas fotografias, comprovam o que sua memória insistia em esquecer; os personagens, os passeios, as cenas de uma vida real. Os discos entoam dias frios, cobertor de conversas intermináveis no velho sofá; despedidas; festas; separações. Cada faixa reconta a sua versão da história. As roupas, que já não entravam no antigamente esquio corpo, refazem um novo percurso individual no tempo, desfile do quotidiano vivido em modificações de estilista doméstica. Aprendizagens e passagens microgravadas na memória soltam-se na perda de convicções. Ídolos destruídos. Mortais imortalizados. Incontáveis horas ainda por ler em páginas que faltam ali e jazem nalguma alfarrabista ou em casa grande como mostra de uma vaidade que ficará por ler.
Cada caixa ou saco de plástico negro que saia do apartamento apertava-lhe em nó na garganta. O pequeno espaço se vai tornando cada vez mais amplo e ela diminuída na sua interioridade.
Eram caixas e mais sacos de lixo. Daqueles pretos. Cem litros ali de coisas. Os armários se abrindo desnudando-se num vazio e o seu peito se contraindo num aperto de dó de alma.
As contradições não começaram aqui.
Muito antes, com a necessidade de concretizar projectos de vida, fez deslocar estantes, livros, mesas, papéis, móveis, poeira. Desengravetar sonhos. Terminar uma sempre adiada colcha de retalhos, iniciada na adolescência, foi a primeira tentativa de um regresso à vida chamada de normal. Resolvera apenas procurar as agulhas, as linhas coloridas, os tecidos tão carinhosamente recortados em vários tamanhos e formatos. Não imaginava que quem terminaria recortada seria ela.
Sanzalando

3 comentários:

  1. "Mensalmente as contas são pagas no equilíbrio do elástico quase partido."... apreciei!!!!
    SJB

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  2. Muito interessante e estilo pouco convencional. Descobri um neologismo: «A artista sonhadora, de avental vai-se esmorecendo na lida da casa que não sonhou, pesadelando os sonhos de ser pintora». Pesadelar de tornar pesadelo?

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  3. Profundo esse texto, rapaz! Muito bom de se ler e se viajar nesse universo de boa prosa.

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