A Minha Sanzala

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27 de junho de 2006

Na poltrona lendo retalhos da estante cerebral


Sento-me na minha poltrona de rocha esculpida pelas zangas do zulmarino. Cansado do vai e vem pela areia da praia que me escalda os pés sensíveis retalhados por carapaças de pele em vez de sola, imitando calos. Sento-me como os olhos amarrados para lá da linha recta que é curva, bem para lá, onde o meu corpo tem ganas de estar e a minha mente lhe vai travando nuns pecaminosos pensamentos de medo, numas formas ondulantes de pensar.
É sempre difícil recomeçar, desistir da inércia do repouso e da comodidade e queimar combustível no motor de arranque. Até há poucos instantes (tão infinitos esses instantes) eu mal me movia. Só o pensamento se movia em direcções aberrantes e convergentes. Ainda agora pus-me a revirar as coisas na minha estante cerebral. Não é muito o que faço agora, mas é muito mais do que fazia outrora. Encontro apenas lembranças. Lembranças do que fui, do que nem me lembrava ter sido e do que eu nem sabia que tinha sido. Lembranças do que eu gostava de ter sido encontro em pergaminhos amarelados pelo tempo. Cadernos, fotografias, cartões postais e de natal, papéis, letras, palavras minhas e também muitas palavras de outras pessoas. Pessoas que me passaram, em sua maioria, silenciosas na minha vida mas que deixaram a sua marca, me cicatrizaram o pensamento de forma indelével. Inclusive eu me cicatrizo na solidão de poder pensar. Ao acaso retiro um:
  • ASCENSÃO E QUEDA

    Conheci alguém, nestas andanças por terras diferentes, cuja vivência consistia em assegurar que os seus objectivos pessoais e profissionais definiam uma única estratégia, um único objectivo: vender uma imagem de santo no meio do fogo que ateava.

    De início, tanto os colaboradores como a família compraram tal imagem: as falhas, os erros, todos os pecados eram entendidos como motivos de união em volta de alguém que absorvia toda a ajuda e que, em palavras, gritava do alto que, no futuro, tal não iria acontecer mais, ao mesmo tempo que atirava para os outros o ónus de tais situações. Tal era a fé, que colaboradores e família sentiam-se culpados quando algo não corria bem.

    Os anos foram passando e a facilidade com que manipulava os outros aumentaram o seu sentido de impunidade, fez cair as barreiras que sustinham algum equilíbrio inicial e fomentou o atrevimento. Aos poucos, a gula, o egocentrismo tomaram conta da sua atitude.

    Os afectos, a protecção, o bem estar “comprados” à família e colaboradores passaram a ser desbaratados em antros de predadores, em meras frivolidades ou em momentos orgiáticos, onde a encenação tomava o lugar da realidade ali tão perto. Aquilo que pensava ser o seu poder mais não era que o seu vício, aquilo que via como protagonismo passou a revelar-se como um desempenho secundário e dispensável perante aqueles que lhe sugavam os bens e a alma.

    Só que a família e os colaboradores cansaram-se da escravidão em que se viram envolvidos e só nessa altura esse alguém constatou que naquele filme já nem sequer tinha lugar como actor secundário e viu-se aproximar o fim no meio do deserto que, sem dar por isso, tinha construído à sua volta. Mesmo assim recusava-se a entender a realidade e só se satisfazia com a notícia de que alguém, de entre os seus ex-colaboradores ou ex-família, continuava a sofrer por sua causa.

    Este pequeno enredo pode constituir a base de um guião para um filme ou outra forma de representação, aplicando-se à história de uma pessoa, de uma empresa ou, mesmo, de um País. Não diverte, antes nos faz reflectir sobre a realidade do nosso dia a dia, sobre o amargo das nossas vidas e sobre a natureza humana, como factor essencial das relações sociais, económicas e políticas.


    Encontram-se aqui os principais condimentos das tragédias gregas, mesmo não se referenciando a presença do Olimpo ou a intervenção de Zeus, o que mostra a universalidade e a intemporalidade dos conceitos. Só que nessa altura, os gregos antigos sabiam que tais representações pretendiam educar, evitando, pelo exemplo, que na vida real se enveredasse por tais caminhos. A ética constituía uma “ciência” que permitia tirar o maior prazer da vida, para nós e para os outros, conviver com os “deuses” e elevar-nos colectivamente.

    Hoje este enredo enferma de um realismo atroz. Uma vida com prazer saudável e baseada na ética só já quase existe como produto de entretenimento, de forma a não deixar esquecer que ainda aparecem por aí uns “idealistas” dispersos, quais gurus da felicidade ou palhaços deste circo contínuo. Por favor, não os “matem” porque já são espécimes em vias de extinção.
MC
Sanzalando

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