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24 de junho de 2006

Sentado na minha poltrona


Sentado na minha poltrona de rocha esculpida pela força do zulmarinho nos dias de rebeldia, agarrado na minha birra loira estupidamente gelada, envolta na sua garrafa cor de âmbar, vou vendo o mundo na curta distância que me separa do imaginário do realmente real. Os olhos se fixam na linha recta que é curva e sinto a tua presença aqui a meu lado, apesar do teu silêncio. Sinto que me olhas fixamente como que com uma paixão platónica. O teu silêncio, que por vezes me é tormentoso, hoje me parece uma carícia doce. Não te olho para que tu não fiques assim como que corada, bastando-me sentir-te na tua presença despercebida e interessada no ouvir as minhas estórias.
Vejo as gentes que vêm da cidade, sorriso escancarado, saindo dos carros mais caros uns que os outros, camisas coloridas, berrantes por vezes, quedes novos de marcas mais que conhecidas, porém alguns comprados nas lojas dos chineses, óculos escuros, alguns parecidos com os pilotos dos aviões que fazem este mundo ser mais pequeno. Atrás dum chegam outros mais que muitos. Todos sorridentes, todos com roupas novas, todos com óculos escuros.
Entram na areia das mil cores, se espraiam numa preguiça aparentemente contagiosa, agarram jornais, única leitura de muitos nos muitos meses do ano, as crianças se cansam do deitar e correm atrás de uma bola que pincha porque tem ar contido no dentro dela, saltitando por cima de outros espreguiçadamente espraiados, possivelmente a pensar na vida vivida ou na vida que passou ao lado, pelas razões mais diversas que a diversidade das possibilidades.
Troncos nus, calções garridos, relógio de ouro reluzente no brilho do sol. Elas vestidas em pulseiras múltiplas tilintando nos movimentos, mostrando o corpo trabalhado num ginásio e no passar da fome, vestidas em duas peças cada vez mais reduzidas, cada vez mais escondendo menos, às vezes parecendo que dois números acima lhes ficava melhor.
Mostram que são donos do mundo, ou pelo menos, eles pensam que sim. De vez em quando se levantam no olhar para ver alguém que passa e quase se consegue ouvir o que pensam.
Olhos escondidos atrás do óculos escuros devem de estar a rir tal como se consegue ver nos lábios.
Chegaram agora e querem ser já donos da areia das mil cores e de tudo o que nela contém. Querem ser os donos da areia das mil cores. Pelo menos é o que parece que querem transmitir. Se esquecem que outros chegaram mais cedo ou até nunca daqui saíram. Estes se notam na distância, nos vestidos floridos, nas roupas sem etiqueta a esvoaçar na brisa que sopra do lado do zulmarinho e que às vezes chega na areia como se fosse um vento impertinente, nas formas menos curvas ou nas formas vai arredondadas não moldadas num ginásio, mas conquistadas nas birras estupidamente geladas, nos serões de trabalho bebidos. Estes às vezes a quererem um dia imitar aqueles e aqueles serem como estes, daqui quase lhes posso ler no pensamento.
Neste areal de mil cores se cruzam mas não se entendem e não se misturam numa solução homogénea. Estão assim como que em emulsão.
Daqui sentado quase consigo imaginar o brilho ofuscante dos relógios dourados que todos gostavam de trazer no pulso, os reflexos dos óculos escuros mandando feixes de luz num espaço celestial clareando ainda mais o dia. Mas ainda falta muito para que isso aconteça, mas lhes vejo daqui a vontade.
Ainda falta nascer muitas vezes o sol.
Eu aqui sentado na poltrona de rocha esculpida pelas lágrimas do zulmarinho, vejo filmes que passam na minha tela do pensamento e que te conto em voz alta, oleada pelas birras geladas que bebo.

Sanzalando

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