Faz conta eu sou criança ainda, na terra que nunca nevou, que faz frio parece é verão no outro lado, onde estarei no futuro de mim. Faz conta também eu ainda não acreditava no pai natal nem sabia que havia um mundo de unicórnios, de fadas e duendes, de renas que voam e felicidades espontâneas. Fazendo essas contas todas, ainda te peço para fazeres uma vez mais de conta que nessa altura eu te escrevi um carta que tu, por qualquer motivo, a tiveste esquecida num bolso desse teu casaco felpudo vermelho e a tivesses encontrado agora, que já não sou essa criança, que já estou num norte dos muitos nortes por onde andei, que passei a acreditar nesse mundo mágico dos unicórnios, fadas e duendes. Não precisas de responder às perguntas que então te fiz porque estão desactualizadas já que comprei o forno que te tinha pedido, que já tenho o carro que tanto tinha desejado, já fiz tantas acções boas como as que te tinha descrito como fazíveis ou desejadas. Nessa carta eu não te perguntei mas aproveito agora para a fazer e essa gostaria que me respondesses: porque todos pedem que te escrevam cartas se depois tu dás o que te dá na gana?
Eu, assinado por baixo, uma criança que se adultou, que continuou a ver o mundo com olhos de ver e sentimentos de sentir.
nota: eu próprio, em nome próprio, assino e me responsabilizo do que digo e afirmo, e não é que obtive resposta, desta vez pronta, manuscrita em letra caligrafada de um velhote que deve ter tido aulas de caligrafia, no tempo em que se tinham as aulas sem opções de escolha:
Querida Criança já adulta
Espero que te encontres bem, que esse cabelo que tinhas e que estava na moda não te tenha caído todo e esteja só esbranquiçado e aparado, já que imagino também ralo e fino num deixar ver a pele de baixo dele. Tens toda a razão e eu de facto deveria ter-te dado o que me pediste, o tal forno que só muitos anos depois soubeste de verdade para o que é que servia e lhe deste uso; não te dei o carro porque sabia já tinhas imaginação para grandes viagens sem teres que sair do lugar, tinhas grandes sonhos que vieste a cumprir sem teres de conduzir horas a fio como tanto desejavas, já davas valor às pequenas coisas que te rodeavam que achei não tinhas necessidade de longas distâncias para saberes que a felicidade estava ali ao teu lado; todas as acções eu sabia que eram facilmente feitas ou adiadas a termo certo porque te conhecia e sabia que davas valor às coisas, até às mais simples, mais insignificantes e sempre lutaste para obter o que tanto desejavas e não te agradaria receber as coisas de mão beijada.
Atenciosamente o teu
Pai Natal.
nota: já faz tempo as crianças deixaram de me escrever cartas, mandam-me agora Twitters, e-mail ou similares.
tão espantado fiquei que com a minha letra quase indecifrável, em papel timbrado há muito em desuso rabisquei:
Querido velhote amigo e pai Natal
Senti-me muito feliz por receber de imediato a tua carta. Eu sei que é ainda Natal e nem tiveste tempo para repousares apesar da tua idade ser eternamente a mesma.
Tive recentemente duas prendas lindas, a Francisca e a Constança, a que juntei muita gente à volta num babar de avô, que me trouxeram a alegria de ser criança outra vez, que me fizeram acreditar no mundo mágico da tua existência. Mas naquele tempo que te escrevi a carta tu davas-me sandálias, quando sabias que eu jogava e andava bem descalço, que as meias e calções podias dar-me noutra altura do ano. Se te falei do forno foi porque me lembrei tarde na vida que aquela divisão da casa servia para fazer comida, mas podia falar-te na bola de futebol onde eu poderia ter ganho muito dinheiro sem fazer tanto esforço ao longo do tempo, eu podia ter ganho fortunas se me tivesses dado o monopólio.
Eu fiquei agora a saber que afinal sempre foste olhando por mim pelo que te perdoo as injustiças que me fizeste no tempo em que eu era criança no lugar onde nunca nevou, que sempre fui tendo o que desejava e precisava, que a superficialidade de ter não foi substantivo da vida.
Assinado e datado por mim
Querida Criança velhota
Sim, sabes que vejo tudo e tudo sei. Dá graças por teres uma família grande, de muitos ramos como ramos têm as árvores frondosas. Segue vivendo a tua vida, olha pelas netas, olha por quem está à tua volta e te admira e te está grata. Segue olhando, segue em frente vivendo e não tenhas dúvidas que o teu passado faz parte do teu presente, do presente delas e do presente do futuro delas. Mesmo quando parecias um idiota, mesmo quando nas brincadeiras te diziam que te faltava algum jeito, mesmo quando te punham de lado, mostraste ter um valor que hoje está patente na tua história de vida, no gostares de ser a eterna criança bem comportada.
Segue em frente porque há mais natal no futuro
Pai Natal, assinatura reconhecida no notário celestial.
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