Vou lá em cima, no sótão da minha memória, buscar o cheiro, o calor e o desenho tipo maquete da minha cidade. Vou buscar a lembrança dos ventos de areia a soprar agulhas nas minhas pernas, as chuvas de Março que empapavam as ruas porque eram planas e não tinha para onde escorrer, os calores ardentes das manhãs que derretiam o asfalto. Vou só mesmo buscar coisas que a memória fotografou para eu agora lembrar. Não sei tinha poeira, não sei havia mortos e feridos nas enxurradas, árvores caídas e prejuízos avultados. Eu criança não preciso saber essas coisas. Me lembro era difícil tirar a areia dos cabelos compridos que eu usava, era difícil manter-me em casa como que fechado no meu castelo protector e o vento lá fora soprava parecia era uivo de lobo que nunca vi.
Vou buscar na memória os saberes que agora não tenho, as palavras que agora não têm o sabor e a música que tinham, e contar as estórias que eu souber. Não vou gastar palavras sem nexo nem contar estórias de sexo, porque eu não sei se na minha terra havia. Boatos e rumores são como as mortes de amores perfeitos, estórias para esquecer ou aquecer ouvidos. Não deve haver escassez de estórias para rir, havia disposição nas esplanadas, gargalhadas altas de felicidade embora o tempo não pare e muitos já cá não estão para contar.
Vamos na feira andar nas cadeirinhas, carrossel de 4 correntes que suspendem uma cadeira e se a gente agarrar o da frente lhe empurra com força com as pernas parece ele vai sair da área. Há gritos e berros, alegria abafada pela música do rancho do Calvário que toca sem parar. O conjunto de Maria Albertina também é freguês frequente nos altifalantes dos carrosséis. As miúdas da Mapunda, vermelhas do sol do mar, circulam vaidosas nos vestidos curtos e vai haver porrada com os gajos da terra que não param de as assobiar.
Vou ao sótão da memória buscar cada coisa que ainda vão dizer é inventado ou desverdade completa.
A Calema vai pôr bué areia na marginal, a gente vai lavar parece é missão. É Março e eu tenho saudades desse Março.
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