Me sento no banco da avenida, à sombra duma buganvília que virou caramanchão para me proteger dum sol tropical que agora começa a aquecer. Me perco desmontando memórias como se fossem um puzzle da Majora oferecido pelos lados do natal ou só de quando fui visitar o meu avô, lá para os lados da Chela.
Remontando a minha última paixão de adolescente, quando eu pensava que alguém estava a gostar de mim por mim, da minha maneira de ser e estar, assim num gostar de graça, barato e sem joia ou quota, interessado em me conhecer e me fazer sorrir, verifico que nas últimas peças havia palavras superficiais de promessas a não cumprir, de vazios a não preencher e eu ali perdidamente apaixonado, em mais um morrer de amores. Este puzzle de cores garridas começava a ficar nuns ténues tons de cinzentos, envergonhando-me de uma posta séria do meu coração.
Quem me olhasse ali naquele banco de jardim, à sombra duma buganvília, iria perceber que o meu silêncio se traduzia num olhar triste desbrilhado e sem direcção. Carregava um olhar de silêncio.
Tento por várias vezes mudar de puzzle, agarrar um de cores vivas e gargalhadas fáceis, mas o silêncio da alma perdura e me provoca lacunas na memória. Não consigo ver para além do olhar, não consigo pensar para além da tristeza, não consigo entrar numa realidade para além do triste passado que me embalsamou nesta sombra de jardim.
Desconfortável me levanto, dou dois ou três passos sem direcção, olho a Minhota quase na esquina oposta, a sua esplanada barulhenta não se fazia ouvir, os carros deviam ser eléctricos e flutuantes porque nenhum ruído faziam de motor ou de rodas, abaixo o Café Avenida estava petrificado no tempo calado e mudo das pedras, o Gaspar Madeira devia pensar era feriado porque estava fechado, a Livraria Mirabilis às escuras e sem letras se encontrava.
Volto a sentar-me no mesmo banco, o mesmo olhar, o mesmo silêncio. Eu acho tinha criado uma realidade baseada na saudade. O meu puzzle não era um verdadeiro puzzle, eram peças soltas duma vida, misturadas numa caixa, anarquicamente dispostas, sem fio condutor ou enredo planeado como nas matinés do Eurico.
Mãos entre a cabeça, desconfortável posição de protecção mental, quero caminhar para uma vida de conforto, esquecer as minhas mortes de amor, apagar os rostos tristes da minha vida, saborear as carícias reais, divertir-me com as palavras proferidas numa conversa de horas tantas, verter umas e outras geladas sem pensamentos secundários ou malfeitorias. O puzzle cinzento marca presença, constante e combativo porque persistente e irritantemente beligerante.
O sol aquece, o meu corpo, apesar de à sobra, ferve. A minha cabeça parece estoirar. Olho para trás, para momentos antigos da memória e olvido-me que a minha pele jovem não tem muitas memórias anteriores.
Ninguém esquece o primeiro amor por mais flashs que tenha posteriormente. Ele ficou gravado na carne, no cérebro, nas mitocôndrias e quem sabe nas bactérias intestinais, porque às vezes ele vem à superfície com ideias fétidas. Ele foi o alicerce da construção futura, ele foi a base da abdicação de tanto futuro, ele foi a overdose do estado de choque. Ele simplesmente foi o primeiro marco duma fronteira.
Tento deixar o puzzle no banco do jardim da avenida, levantar-me num ir embora, partir para outra duma forma doseada e contida, mudar de vida na sua definição e conceito territorial, consolidar escolhas, mas o raio do puzzle mantem-se grudado nas minas entranhas que o tenho que carregar vida fora, querendo ou não, agradecido ou revoltado. Ele faz parte de mim.
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