Faz cacimbo que nem no tempo dele. Acho não dá para ver o Liceu. Acho que nem dá para ver os poucos carros que circulam. Vou fazer mais como para ir nas aulas e receber as lições de História, Geografia e desenho se não consigo ver um palmo à frente do nariz? Acho vou ficar aqui absorto nas minhas memórias duma paixão antiga, naquelas que na altura nem tinham graça porque eram uma desgraça. Eu lhe gostava e lhe impunha a minha presença. Quando eu não aparecia ela me chamava. Quando eu chegava ela me olhava como quem me avisava que eu tinha que estar ali faz tempo. Mas de facto nunca lhe ouvi dizer que me gostava e isso me deixava triste. Se calhar fui eu quem percebeu mal e esse amor era unilateral e o resto era fruto da minha imaginação e sofrimento. Recapitulando todas as palavras que lhe ouvi na minha vida adolescente só sobrava aquele olhar de coração. Não me lembro de nenhuma promessa ou jura de amor.
Quando me olho nesses tempos e encontro todos esses momentos eu fico assim esvaziado e até sinto um bocado de vergonha por ter sido tão infantil, ao ponto de não perceber que Camões dizia que amor era fogo que arde sem se ver e ela não via, eu não via. Eu, da minha parte sofria. Mas não vou ter vergonha. Eu até que gostava de sofrer de amor. falava e não me calava e todo o silêncio era grito na minha solidão. Eu não estava senil nem tinha esquecimentos de memória. Lhe gostava e falava, menos com ela. Com ela eu divagante, imaginativo e enchia meus sonhos de delírios irreais e a minha cabeça até que fervia. Eu sabia os passos, os horários e os tons de voz. Mas eu não lhe dizia, estava desconfortavel no meu conforto de amar assim platonicamente.
Esse cacimbo não esconde esse passado nem o desconforto de agora ao lhe recordar. Santa Inocência devia ser a minha padroeira se eu fosse pessoa dessas coisas. Acho até que as nossas linhas astrais se cruzavam na perfeição. Não que eu tivesse consultado os astros mas o amor só me deixava ver esse claro que nem água.
Hoje, ouvindo esse silêncio ensurdecedor e irritante, me confunde na paixão boémia dos poetas do antigamente que eu imitava ser.
Eu me senti amado, de modo irreal, porque irreal era o amor que eu tinha declarado. Sentido de forma sobrenatural, ultrapassando de forma transcendental, uma adolescência real. Só me podia fazer mal. E tão mal me fez que cresci e deixei a adolescência para trás, com mágoa e sonhos a realizar.
O sol que queimou a minha pele, os quilometros que percorri para lhe ver, as madrugadas que percorri para não lhe perder, os silêncios que engoli para não lhe sofrer, fazem parte deste cacimbo que cai que nem no tempo dele.
Foi um amor real, porém ruim, pelo menos para mim. Senti desconforto, desesperei, cheguei a bom porto e renasci.
Hoje posso dizer que, sentado na varanda da minha casa, cacimbado tempo este, me faz dizer-te que gostava de te falar de passados que vivi sem que tu tenhas notado e os tenhas perdido.
Faz cacimbo, meteorológico e na vida, e eu não quero esquecer as coisas bonitas que a minha imaginação me fez viver e sentir.
Todos temos uma estória de amor para recordar, um desmoronar poético para reconstruir. Tu és o meu poema inédito que não escrevi.
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