recomeça o futuro sem esquecer o passado

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31 de julho de 2023

viagem ao planalto 11

Agora meti na cabeça a ida a Pereira d'Eça já não estou com cabeça para pensar mais nada. O avô é quem vai me dizer. Mas a ida é só mesmo em Agosto e ainda falta dias. Para mim era já amanhã, pois esses meus tios adolescentes não têm tempo para estar com o puto do deserto. Já decidi de papel assinado que não vou ser como eles. Primeiro os putos da família e depois as namoradas e as escapadelas que eles fazem e não me dizem. Acho eles têm medo que eu conte ao avô. Eles se esquecem que tem fidelidade no meu apelido. Lhes alinhei em tantas coisas que eles agora estão com medo de mais o quê? 
Vou amanhã, na assembleia da esquina amarela, com o Garito, Caleres, Filipe, Zeca e Vasco Gouveia, Caires e Leitão, bem como Ruinando, pôr isso à discussão. Estou um ano a fazer planos para estes três meses e afinal vou passá-los sozinho. 
O Docanhia se compreende, é o futebol e o basquete que estão em primeiro lugar. Todos dizem ele é super adaptado para isso. E quando no quintalão ou no campo da pousada a gente joga ele dá show que até faz sentar no chão. Agora os tios é que eu não estava à espera. 
Agora vão ao quilómetro 16 comer febras e não me levam. Aqui tem qualquer coisa que o puto do deserto não compreende. Não tem sentido. Vão ao pão? O Mendonça não está cá. Mas esse é doido desde que lhe chamam padre. Faz-me rir e não é levado a sério. As meninas estão bessa coisa da adolescência também parva.
Vou fazer mais como então. Vou a Pereira d'Eça e o avô que se desenrasque com o carro.


Sanzalando

30 de julho de 2023

no hoje de amanhã

Só mais um dia e se acaba Julho.
Até me parece eu tenho enlouquecido nos últimos dias. É almoço, é jantar, é sorrisos na tarde e na noite. É vida intensa dum verão a norte num cacimbo a sul. Desistir não passa pela cabeça, fugir não me ocorre, esconder não é meu feitio e me reconstruir diferente não faz parte do meu modo.
Podia só esconder-me num ermitário monte duma serra qualquer, sem mar sem céu e sem horizonte, mas não ia nem dar por mim nem ser eu. Desfazia-me do modo abstrato da minha existência. Com todas as deficiência continuo sendo eu num cansado feliz, numa amalgama de palavras e sorrisos, numa sobrevivência ao mês que amanhã termina. Mas outro vai começar e outros se seguirão e eu espero ser o mesmo de outrora no hoje de amanhã.


Sanzalando

28 de julho de 2023

desvontades

Oi, Zé, como é que tu estás? Hoje é daqueles dias em que a minha bússola não sabe onde é o norte. Estou aqui a escrever-te uma carta e ainda nem sei porquê. Só sei mesmo que estou em dia que não apetece nem pensar. Hoje, se tivesse lugar marcado eu nem o ia encontrar. Estou desavontado, desengovernado e abdicado de mim. Deve ser vento leste, se me lembro dos dizeres da minha avó. Te digo mais, Zé, se hoje tivesse obrigação desobrigava-me todo. 
Sei que podia estender a toalha na praia, deitar-me, fechar os olhos e dispensar pensamentos vazios. O tempo ia passar e esta desvontade ia com ele. Mas como não isso eu tenho a certeza, acho que vou ficar aqui a olhar, somente olhar sem ter a preocupação de ver, assim num faz de conta que não ia perder tempo num desver da vida, destropeçar nas rasteiras que preguei ao longo dela. 
Pois é Zé, dizes que a vida é injusta, que nos oferece uma resma de coisas mas quando damos por ela tudo já se foi, até o ingastavel tempo. O girar perpétuo se lentifica segundo as leis da física e a química diz que hoje não há umidade no ar, humanidade nos cérebros, solidariedade nos corações, racionabilidade nos cérebros. Hoje vou ficar só a olhar e se algumas palavras ouvires, Zé, não fui eu que disse foi a minha desvontade de pensar.


Sanzalando

27 de julho de 2023

daqui

Lá no alto, onde não consigo sentir a temperatura da água do zulmarinho, protejo-me do vento que sopra vindo do norte e me empurrando para o meu sul, vejo tudo parece miniatura, tudo parece é maquete se não fossem as palmeiras dançarem ao som do vento que lhes abana. Elas dançam pelo música das suas folhas ou apenas abanam pela força do vento? Se é do vento te vou dizer que é um vento ousado que quase lhes parte o tronco. 
Não sinto o pó soprado porque neste abrigo não tem areia para ser levantada, é o meu castelo de imaginações e outros delírios, é o meu refúgio onde guardo os meus sonhos e desejos.
Daqui me lembro dos seus cabelos compridos lhe cobrindo a cara nos dias adolescentes de outras eras, de outros ventos. Daqui vejo na memória a sua elegância num andar parece foi estudado ao pormenor. Daqui me lembro das nossas conversas e planos dum futuro que não foi construído como planeado, porém totalmente desigual mas não menos feliz. Daqui me atiro palavras que às vezes parecem sem nexo, nuns cânticos improvisados na tentativa de fazer um hino ao passado que mais não me é que um presente que já foi vivido. 
Daqui, desta minha fortaleza, não me falta alegria em ver o horizonte, linha recta que se curva num perímetro esférico de imagens e sons recordados. 
Se eu não estivesse aqui ia estar mais onde a rever-me no tempo que não para nem se congela, que não se afia nem se espeta como farpa na adolescência se quer desaparecida ou apagada?
Daqui sou rei mesmo não sendo monárquico, presidente mesmo não tendo país, dono mesmo não tendo mundo. Daqui nem o vento que faz dançar as palmeiras me apaga a memória ou me eleva o futuro. Daqui sou quem manda nas ondas, sou eu quem manda na vida.


Sanzalando

26 de julho de 2023

caminhando

Vou caminhando por aqui. Outras vezes vou por lá, sendo que lá é um abstrato lugar da minha imaginação, um ponto da minha infância, um espaço temporal da minha adolescência. Outras e tantas vezes é apenas um lugar comum, um ponto de espera, uma paragem na vida, um momento de reflexão. 
Na verdade, o abismo está tantas vezes dentro da nossa cabeça que se não fizermos uma boa caminhada por nós, caímos e sem qualquer amparo ou amortecedor nos magoamos. Assim, caminhar é uma tábua de salvação, um porto de encontro, um auto-abraço de carinho e confiança. 
Caminho na forma literal dum passeio pela vida, nas frases construídas, nas palavras silenciadas e no vernáculo utilizado por pensamentos cruéis que nos afogam no abissal ponto de quase pensarmos ser o o parágrafo final.
Vou caminhando, umas vezes na praia da areia de mil cores, no escaldante sol dum verão, no perfume duma maresia ou no balancear duma ondulação mental. Caminho por palavras no silêncio dos meus passos, reais ou plebeus, ligo-me e desligo-me dum mundo real, com a facilidade de receber um afeto ou carinho auto-dado.


Sanzalando

25 de julho de 2023

viagem ao planalto 10

Bem, vou aproveitar o tempo e vou no salão de cabeleireiro da tia Clara e corto o cabelo que ele assim já me tapa a visão. Ela tem paciência para me aturar e ainda dá gargalhadas que me fazem rir. 
Cabelinho cortado, todo aprumado dou um salto no Rádio Clube e vejo se está por lá o David Borges a fazer o seu programa de música e às vezes em directo doutro lado qualquer. Um gajo de férias escolares tem de ocupar o tempo com qualquer coisa, pois se não dá saudade e vou desejar ter aulas e isso não é saudável, pelo menos para mim que desejo estas férias desde o ano passado.
Nada. O Carlos Meleiro é que está de serviço. Ele é mais velho. Ele é do tempo do meu pai. Me recebe eu parece sou filho dele. Fizemos festa e até me deixou fingir ser o sonoplasta dali. Ele me convida para o programa da quinta feira à noite desde lá do Casino da Senhora do Monte. Que digo que sim sem saber se me deixam ir. Ser criança tem estas desvantagens de sair à noite para longe. Nem por sonhos me meto sozinho pelo carreiro até lá na base da Serra. Então é que era chegar feito defunto de palidez.
Mas quinta feira ainda não é hoje e logo se arranja maneira de ir. 
Cheguei na casa da tia. 
- Almoçaste? 
Eu disse sim sem mesmo ter ouvido a pergunta pois estava a mentir e assim eu não sei se menti ou não. Vagabundei pelas ruas do Lubango, nas minhas férias grandes e inda ia levar no focinho porque estava a mentir? Não. Fui na cozinha, comi pão, enganei a barriga e voltei na rua para passear mais um bocado. À tarde fui na loja do tio Honorato. Depois fui espreitar o Colégio das madres mas como é férias não estava ninguém à janela. Visitei a tia Mariete e voltei para a tia Eugénia. Me deitei na cama que é onde é que era o armazém da mercearia no tempo que o tio Artur vendia tudo e mais muita coisa. Está mais fesco aqui do que andar pelas ruas feito mirone de mulheres lindas que não andam na rua a esta hora. Nem Combinado nem Flórida tem gente a esta hora. Na Tirol tem os habitais jogadores de bilhar que fazem alguma coisa menos trabalhar. Eu aqui não me meto pois é tudo gente mais velha e têm mau perder e há sempre zaragata se puto faz brilharete. 
Aqui, refrescando a mente a pensar na Ana, nas Anas ou numa possibilidade de ir a Pereira d'Eça à casa do tio Néné. Será que vão me deixar ir? Eu gostava mesmo sabendo que para lá chegar eu passo muitas horas na carrinha do avô e o avô não é um às no volante. Eu não conheço, só de me dizerem que é pequenina que nem cidade devia ser. Mas eu estou de férias e preciso ser mais culto e quem viaja tem cultura. 



Sanzalando

24 de julho de 2023

Viagem ao planalto 9

Assim, meio da manhã e sozinho vou fazer mais o quê? Dou corda nas pernas, digo à avó que vou na Senhora do Monte e ela fica só admirada mas desconsegue dizer que não. Essa avó é mesmo doce de gente e desconsegue me levar a ficar. Viro na esquina à direita, passo na casa do Leitão e apanho o carreiro que me vai levar aos eucaliptos, passar o caminho de ferro e chegar ao lugar onde vai ficar a feira e seguir para a piscina. Houve um doido que fez uma lagoa bué grande, toda em jage e cimento e lhe chamou de piscina. Até tinha gaivota de andar ao pedal e passear. Dum lado era rasteira e do outro muito funda que até tinha prancha de salto.  Subi uma vez lá em cima e desisti. Mas de lá via-se a cidade linda cá embaixo. Desconhecida a estória da piscina, tirei a camisa, descalcei as sandálias e de fato banho parecido eu era o Tarzan esquelético, fui para a parte mais baixa da piscina e me lancei na água. Não tem comparação com a minha água do meu mar. Pus o pé no chão e achei assim escorregadio e que me arrepiei. Resultado, fiquei assim sem pé mesmo que a água me desse pela cintura.
Xicoronhos e mampundeiros eram muitos. Da minha cidade eu não encontrei ninguém. Estar na piscina assim sozinho não estava a me animar. Olhei e nem uma garina me prendeu o olhar. Deixei-me secar e depois de vestir voltei para o carreiro. Agora sim, estava com medo. Havia dois e eu sem saber qual é que era o meu. Pela estrada é uma volta do catano e eu não quero. Pensei e depois de ver o comboio decidi que era aquele. Lhe segui, passei a linha, andei e sempre a olhar para trás. Acho alguém me seguia. Eu sei que era só o medo e uma ou outra rajada de brisa a abanar os eucaliptos. Comecei a correr que só parei quando vi a casa do Leitão. 
Ufa... os meus tios iam agora para a piscina. Não, eu vos espero aqui em casa. Muita emoção para uma manhã de calor a 2000 metros de altura. Até me falta o ar. 


Sanzalando

23 de julho de 2023

viagem ao planalto 8

Foi uma noite dormida e esquecida. Deslembro completamente como correu a noite pois acgo me deitei e só acordei agora para o matabicho. Pão com manteiga e café com leite. Agora vou na casa do avô saber se os tios ou amigos querem ir na piscina da Senhora do Monte. Dou corda nas sandálias e me ponho ao caminho. As primas dormem e a tia tem de ajudar o tio na loja de modas e fardos e não tem tempo para me levar lá. Machimbondo não gosto pois sou muito novo para essas coisas de transportes colectivos em troca duns trocados. Os trocados vão servir para os carrosséis quando começarem as festas da Senhora do Monte. Não posso perder dinheiro agora nessas comodidades.
Cruzo-me com o meu avô que vem a pé e a brincar lhe digo:
- Bom dia Sr. e chamo pelo nome.
Distraído e despassarado como sempre me responde
- Bom dia. segue o seu caminho como se eu fosse algum dos vizinhos que lhe incomodam os pensamentos
Grito:
BOM DIA AVÔ
ele olha para trás e me pergunta:
- Ias passar sem me dar um beijinho, miúdo malcriado...
Olha para o meu olhar de espanto. Lhe acordei dos pensamentos e ele ainda me diz assim.
- Que fazes aqui? como a me preparar um raspanete.
- Estava à sua espera,. Me defendi.
- Anda, vamos à fazenda. Era assim que eles chamavam a essa coisa das finanças.
- Não avô, eu vou se Ruinando já acordaram. São dois mas a gente lhes chama sempre assim parece é só um.
- Direitinho para casa. Quando é que chegaste? Até parece ele não sabe eu cheguei ontem.
- Ontem, avô.
- Não te vi ao jantar?
- Estou na casa da tia Eugénia, avô.
- Ah! e seguiu sem me dizer mais nada.
E eu também fui até na casa dele. 
- Avó, O Ruinando? 
- Estão a dormir. Não lhes acordes que chegaram tarde.
Esses adolescentes fazem mesmo o quê para se deitarem assim tão tarde? Vou escrever num caderno que não quero ter mais idade que a minha de agora.



Sanzalando

21 de julho de 2023

viagem ao planalto 7

Mesmo quase morto de sono fui até na Flórida comer um bolo e ver as pessoas fazerem o picadeiro. A rua parecia estava fechada aos carros e era vê-las subir de descer parece estavam na passarela desfilando charme. Me encostei na montra da Flórida a comer o meu pastel de nata e a tentar contar quantas pessoas subiam e me perdi na mistura com as que desciam. 
Que faz esta gente a passear desde o Metrópole até ao Figurino da Huíla? 
Deve ser pela minha pouca idade que não percebo. Aos pares ou aos montes as famílias ou os casais de namorados sobem e descem a rua como se houvesse novidade na viagem. Será que se cumprimentam cada vez que se cruzam?
O pastel acabou, as pessoas continuam mas eu vou mesmo é dormir que para o primeiro dia eu estou estoirado da viagem.


Sanzalando

20 de julho de 2023

viagem ao planalto 6

Perdido nestes pensamentos de ser criança sem vontade de crescer e ser tão coisinha me lembrei que eu mesmo estava com olho numa ela e ainda não lhe tinha procurado. Não devia ser muita a vontade. Mas amanhã vou procurar a Aninhas e ver se ela ainda não encontrou outro amor da vida dela. Este planalto é assim nestas idades? Comecei a lembras recordações intemporais, as fugas para as festas da Senhora do Monte de outros anos em que ela e o irmão alinhavam connosco e assim tínhamos trocado olhar, tínhamos piscado olhos com corações aos saltos. Os pensamentos pareciam uma tapeçaria persa feita em ponto não sei quê. Eram nós uns atrás dos outros e eu não queria ter a vida enlaçada nos cruzamentos de linhas. 
As primas chegaram, alegres e contentes cheias de estórias e risos que me pareciam marotos. Eu esboçava sorrisos pálidos como quem entendia que elas eram felizes nos amores. Adolescentes!?
De facto eu ia apresentando uns sintomas dessa fase da vida. Fugia deles mas eles insistiam em aparecer-me. Na cidade do deserto eu tinha um amor tão perto e ela não sabia. Aqui eu ia ser espevitado e ela ia saber. Eu estava a sair da casca, me dizia.
O ar pesado da altitude fazia o seu ar de graça e eu me sentia uma desgraça, cansado e sem fôlego. A noite chegou e como ainda não havia festas da Senhora do Monte eu não ia sair à noite. Na casa da tia não tinha amigos perto. Eles estavam na Lage e isso era longe para o puto fazer isso à noite.
Vou até ao picadeiro. Elas normalmente passeiam à noite até cerca das 10. A minha tia me deixa sair e a minha irmã de certeza quie vai com as primas. Elas não me querem nem perto.
Jantei, fiquei a ouvir as estórias do Tio Artur, as gargalhadas da tia Eugénia e quase adormeci no colo da prima Céu.


Sanzalando

19 de julho de 2023

Viagem ao Planalto 5

É lá fui eu desde a Escola Industrial e Comercial até frente à foto Académico. Desta vez não passei na frente do liceu. Virei antes de chegar ao cruzamento do Hospital. Não é mais curto nem mais longo. É só mesmo porque não gosto de fazer o mesmo caminho duas vezes. Manias. Esta rua, cujo nome faz tempo nunca soube, é uma rua menos bem frequentada por carros que a outra que vai dar na Senhora do Monte. Aqui é mais comércio. Mais lojinhas e lojecas, a grosso ou a retalho mas nunca a fiado. Virei na casa de saude que já foi sede dos caminhos ferro, entrei no jardim e passei à frente do Magistério primário e depois então é que virei na minha rua, que mais não é que a rua da minha tia, já que a minha fica a centena de quilómetros daqui. Me cruzei com gente. Muita gente. Cumprimentei a torto e a direito. Não conheço ninguém. Vantagem de cá só aparecer de ano a ano e criança não deixa marca. 
Minha tia estava preocupada. Eu andar só assim sozinho na rua logo no primeiro dia. 
- Tia, eu tenho boa memória. Só não conheço o bairro Santo António porque fica para lá do campo do Benfica e acho eu que só lá passei de carro cada vez que chego de comboio e puseram lá a estação. A tia Tereza mora para lá, não é?
- Não te digo senão ainda te pões à procura...
- Não tia, eu sou criança mas não sou doido. Ir ia, mas voltar voltaria cansado e eu não estou para isso. Estou de férias e não é para me cansar.
- Vai ajudar o teu tio na loja.
- Ele deixa cortar o bacalhau com aquela guilhotina presa ao balcão?
- Miúdo, a gente já não tem mercearia, agora é roupa. Fardos e roupa fina.
- Hã? Já não tenho que pesar feijão, arroz e essas coisas? Não gosto disso.
Vou para o armazém dos Cardosos, dizendo isso, saio pela porta dos fundos que dá para um campo campinado onde às vezes jogamos à bola. Capinado e inclinado. Daí, talvez esta minha falta de jeito, então comparado ao Armadinho... Ninguém no quintalão. Esta cidade está diferente. Pelo menos para mim. Cresceram, adolescentaram e já não têm tempo para brincadeiras de miúdos. Só pode. 
Elas mostram o pernão e empinam as mamas, eles mudaram de voz e são galifões. Não, eu não quero crescer assim.



Sanzalando

18 de julho de 2023

viagem ao planalto 4

Agora que estou sentado na Igreja da Lage, a meditar sobre a minha ida para o centro da cidade, subindo e descendo, a pé, como jovem que sou, acabado de ser criança, me recordo de alguém ter dito que o Padre Luis Carlos viveu na minha casa nos seus tempos de estudante. Deslembro-me se calhar porque ainda não tinha nascido. Na verdade ele é muito falado agora porque usa cabelo comprido, anda de mota e veste jeans em vez de andar como os que eu conheço com batina e colarinho parece é mesmo de padre. Trouxe para a sua igreja todos os jovens daquele bairro, que podiam ser gandulos e outras molecagens, para a missa ao som de música rock ao vivo e desafinação on-line. Mas mesmo assim eu não vou ficar aqui à espera que ele apareça ou que os meus tios apareçam da casa de alguma das miúdas. Se calhar foram para a Mitcha ou bairro José de Almeida e eu estou aqui a neuroniar o cérebro com vagabundagens pensadas. Dou de perna e lá vou até pertinho do Rádio Club da Huíla. Será que o David Borges está de serviço agora? Deixa lá isso. Vai só na casa da tia e te aguenta com as primas e afins que dão muito trabalho lhes ouvir nas estórias da sua juventude. E elas que são bonitas. Mas são minhas primas e portanto cuidadinho.

Sanzalando

17 de julho de 2023

Viagem ao planalto 3

Como sempre entrei pelo quintal onde a avó Clara ultimava o jantar no seu fogão preferido de lenha. Esta avó, apesar de emprestada, era um doce que qualquer neto gostaria de ter. Ela me recebeu como um príncipe que não via fazia meia dúzia de meses. Foi mimo interminável que até me fez esquecer o calor da subida desde a baixa até lá na Lage. Olhei a árvore do meio do quintal, é única, que dá fruto e que bem que me sabe colher e comer directamente. Se a idade não me trai eram amoras. Lambuze-me com uma dose de meia dúzia acho eu a dar para o dobro. 
 - Os tios?
Devem estar na esquina amarela, respondeu a minha avó como se estivesse a falar para o ar. 
- O avô?
- Foi à cidade... fiquei baralhado. Eu estou na cidade. O avô foi mesmo onde?
E como a conversa não ia dar a lugar nenhum eu me perguntei do alto da minha sabedoria porque o avô, aquele daqui, era avô e o outro da cidade do deserto era avô Serafim. Eu não me soube explicar e ninguém me ouviu o pensamento pelo que não obtive resposta. 
- Avó, hoje janto aqui?
- Não, jantas na casa da tia.
OH... pensei eu comigo que ainda tinha de fazer a ronda pelas redondezas e depois ir até lá abaixo outra vez. Criança sofre.
- Beijinhos avó. Disse e sai por onde entrei. Fui à procura dos tios, gémeos mas quase da minha idade mas eles pensam são adultos e eu criança. O Caires e o Leitão estão na esquina. Vasco e companhia, ou sejam os meus tios nada. Acho foram lá para os lados da escola comercial. Um deles me respondeu. 
- Obrigado e é bom vos ver.
Me desligaram por completo. Não estava ali nenhum dos meus tios e a conversa já ia ser diferente.
Fui até na Igreja da Lage. O padre Luís Carlos não estava. Pelo menos a porta estava fechada. Eu também não ia falar com ele. Era padre de rock mas eu não me dava a essas coisas e não era Shalon. Na volta da igreja nada deles. Minha vida solitária estava a ser completa. Tinha de fazer todo o caminho de volta a pé, sozinho e eu não sabia os carreiros da cidade. Sentei nos degraus da igreja a pensar. Era mesmo só a imaginar a viagem de regresso, à casa da tia. Bolas, primeiro dia no planalto que até custa respirar e ainda tenho de fazer tudo de volta. Subo até à esquina do Hospital e depois é sempre a descer. Uff, estou com falta de ar só de pensar. E o cieiro está a estalar os lábios. Porque eu me vagabundei mal cheguei?


Sanzalando

16 de julho de 2023

Viagem ao planalto 2

Instalado na casa da minha tia, por acaso na casa onde nasci, sendo meio da tarde, é boa hora para fazer a caminhada para a casa do avô. Não sei horário dos machimbombos verdes nem qual o caminho deles e como sou um gajo novo vou mesmo a pé. 45 minutos é mais o quê? Se eu caminhasse descalço, a esta hora de sol pode ser queimava os pés, mas quem tem sandálias se aguenta que nem um pouco de transpiração faz bem.
Pelo caminho passo no palácio. Jardins aprumados e verdes que até parece é gente bem. De governador. Desconheço quem é e não sei se estou interessado em saber. Não me vai ligar nunca. Grande hotel no seu super amarelo parede a mostrar que é muitas estrelas que não me deixam entrar. À frente tem o Liceu onde andou meu pai e mais gente de elevada importância. Lhe olho na sua fachada parece é monumento e presto a minha homenagem, mesmo ainda não sabendo bem quê que é isso. Mas de pequeno se torce o pepino e se educa. Descampado à esquerda e campo de futebol à direita, dizem é da Académica. Sim, pode até que ser mas não tem bola hoje para eu confirmar de olho assinado em papel vivido. Aqui na esquina dizem vão construir cinema grande com boite e tudo. Mas ainda é só um muro para um ribeiro que passa veloz e barulhentamente. Virei e mais uns passos passo na bomba de gasolida dos Gouveia e chego na casa do avô.


Sanzalando

15 de julho de 2023

Viagem ao planalto 1

Era de manhã e eu de mala feita, pronto para mais uma viagem rumo ao planalto onde ia passar os três meses de férias. Casa do Avô e duma das tias. Era a sorte que eu só sabia lá à chegada. O trajecto era sempre o mesmo. Caminhos de Ferro me levavam. Ou comboio ou a Drezine. O Sr. Alves dava a partida e lá ia eu. Parando sempre que o comboio ou a Drezine entendessem. Eu brincava que parava nas estações e apeadeiros e no meio. Mas eu ia feliz serra acima festejar mais umas férias grandes. Mal eu sabia que um dia isso ia acabar. Quem é que inventou que os adultos não têm férias grandes? Porque nos habituaram a ter?
Na verdade lá ia eu ingénuo no vapor ou no diesel. Ainda fui naqueles comboios puchados por máquinas negras e possantes que fumegavam que nem fábrica. 
É este ano que vou arranjar namorada no planalto. Todos os anos era esta fé. O sorriso não me saia da cara, a brancura não me saía da pele, a vontade ferrea de me divertir ia comigo. 
Nunca enjoei na viagem. A minha mãe era demais. Acho o comboio ainda não tinha arrancado e já ela ia virar tripa exterior. 
Se a viagem fosse de noite ainda que dormia, sendo de dia eu queria ver tudo. Era a melhor maneira de eu fugir do meu minúsculo mundo chamado rua. Eu vivia a minha rua. Era o café, era o bilhar e era ela. Só o Liceu ficava fora de mão. Mas nesta viagem eu tinha direitos à minha liberdade, ao meu novo mundo.
Acho este ano vou esquecer a cidade de areia e as minhas paixões e vou virar planaltamente homem de mim e meus novos corações.
Quem é que me vai buscar ao comboio é quem me fica a aturar até final de Setembro. 


Sanzalando

14 de julho de 2023

um dia de cada vez

Se gasto as palavras, onde posso ir buscar umas emprestadas? Eu gosto de usar as minhas. Mas se gastas ficas sem elas. Arranjo forma de não as perder. Uso-as e reciclo. É uma ideia. Tenho de a amadurecer e ver se encontro as palavras que gastei e o vento não as deve ter levado para longe. Só receio que haja palavras que eu não me recorde de as ter usado. Coisas do tempo e da vida.
Era tão bom olhar para a folha de papel e num ápice ela aparecer com palavras certas nos lugares certos a falar de certas coisas.
Acho vou de férias e penso nisso quando lá chegar. 
Mas férias é um lugar? Se eu quiser é. Já cheguei à idade de eu quero eu posso. 
Ok. Não te zangues. Eu?! Já não tenho idade para essas coisas que fazem perder tempo.
Posso arranjar outros temas. Assim brilhantes como o sol de verão, assim iluminados como as ideias da tua juventude. A minha juventude também foi boa. A minha infância também. Mania das pessoas usarem régua e esquadro para medir a felicidade dos outros e compararem. 
Vou de férias. Ou não? Um dia de cada vez e logo se verá.


Sanzalando

13 de julho de 2023

páginas de vida

Nas minhas caminhadas há passos que não deviam ser contados ou levado-me a lado nenhum? Claro que sim. Mas não são para apagar, esborratar ou simplesmente ignorar. Eles são parte integrante da minha formação deste agora que sou hoje. É verdade. Dei passos indevidos. Usei palavras sem serem do tempo certo na adjectivação de mim, caminhei calçadas escorregadias, esfreguei-me na vida e arranhei-me suavemente por ela.
A minha vida, jardim de rosas, lindas flores e alguns espinhos, não é, nem nunca quis que fosse, um conta de encantar, de enganar. É só a minha vida, uma passagem dum livro de muitas páginas que não tem fim. 
Nas frases desfeitas pelo tempo descrevi-me, contei-me como penso que sou, perdi-me no que gostava de ter sido. 
Nestas caminhadas fiz um livro de páginas de vida.

Sanzalando

12 de julho de 2023

héroi de cinema

O mais perto que estive do amor pleno foi à saida da matiné do Eurico, quando eu via os filmes da Marisol, Joselito, Rita Pavone e Giani Morandi. E também me senti cowboy nas noites repetidas que vi o Trinitá, Cowboy Insolente. Foi no cinema que sempre me senti herói. Canhões de Navarone ou Ben-hur, bem como um verdadeiro santo ao ver o Jesus Cristo Super Star. 
Mas a realidade depressa me trouxe ao ponto vivo da vida e só um bom livro me leva a rever-me adolescente faminto de saber coisas dela. Da vida porque dos outros pouco sei e o que sei é porque é importante.
Tudo fruto deste caminhar solarengo, deste transportar de sombra que me leva de sobra para aquele sul que é o meu norte, meu ponto de referência. 
Mas todo este volta atrás não é por doença de saudade, é mesmo só porque gosto de me lembrar que eu vivi.


Sanzalando

11 de julho de 2023

me deixa só

Me deixa ir só por aí, sem rumo, destino ou finalidade. Vou só seguindo os meus passos, as minhas palavras, recolher num organizar-me para as frases saírem soltas e ritmadas, como se fossem escritas num papiro dos velhos literários. Me deixar só ir limpar sótãos, arrumar prateleiras para ver se cabem mais coisas, se arranjo novos espaços. Me deixa ir de janelas abertas para entrar ar e sol no meu sótão desenergizado. 
Me deixa ir num off-line, num modo esquecido de invisibilidade para limpar a poeiras que me leva à insanidade.
Me deixa tirar um tempo ao gosto e saborear o ar fresco das madrugadas adormecidas pela brisa noturna, pelo ar fresco do romper da aurora, pelo cacimbo doutras latitudes. Me deixa só no silêncio para eu me arejar e ficar lindo que nem um arco-íris ou um pôr-do-sol fotogénico.


Sanzalando

10 de julho de 2023

contrariado

Um dia vou chegar ao fim do caminho. Quem caminha tem como finalidade chegar ao ponto. Ponto final sem parágrafo nem travessão e sem reticências. Se atravessa no comprimento horizontal da sua existência e the end aparece como nos filmes do cinema e outras modernices.
Eu espero que quando chegar a minha vez eu nem tenha tempo de dizer adeus. Partirei indeterminadamente de corpo e alma, pés descalços, olhos petrificados no horizonte que não atingi. Se eu tivesse algum órgão dos sentidos ainda neste campo do lado de cá de certeza ia sentir uma dorzinta no coração pelas saudades de futuro que deixei de ter. 
Eu, no lado de cá, caminhando pelos meus caminhos, de forma específica ou à procura duma costa que me leve à minha costa como um peso que trago nas costas de ter deitado para trás tanto de mim, me sinto um pássaro livre que voa no céu ao sabor das correntes de ar, quentes e frias, ou só com o seu bater de asas levantando uma leve brisa que o levita nas lágrimas que não choro. 
Eu sei que não mereço o fim do mundo, mas um dia ele vai chegar e eu sorrindo tentando não ir, me deixo levar como se estivesse na parte final dum livro de amor. Chorará alguém? Contarão estórias, umas de verdade, outra num supostamente e outras fantasias. 
Lerão os meu livros, aqueles que deixei na estante como que por um instante não terminados?
Ouvirão os meus versos que não declamei nem escrevi porque o meu amor não tem palavras e está carregado de silêncios?
O meu coração bate, suave e ritmadamente e não espero que páre em nenhuma estação ou apeadeiro, antes da hora.
Um dia, quando os meus pés não me levarem, quando as palavras deixarem de significar, eliminar-me-ei eternamente com uma dorzita no coração de contrariedade.



Sanzalando

9 de julho de 2023

Me deleito a olhar o zulmarinho faz de conta entrei em transe. Assim sem mais nem menos fui de mim para parte incerta. Eu sei que não posso ser o meu ontem porém posso guardar as minhas esperanças passadas. Eu sei que não vivo o ontem neste hoje, porém sei que sem ontem não havia este nem nenhum hoje. Vou apagar qual ontem? Os maus vou destacar para me lembrar de não repetir. Os bons vou sobressair para me recordar sorrindo.
Eu não consigo caminhar ao sol sem me fazer sombra. Há sempre mais algo para além de mim.


Sanzalando

8 de julho de 2023

silêncio

Estendo a toalha na areia de tantas cores e que tem dias me escalda os pés, o que não acontece hoje, e medito com o olhar atirado no zulmarinho. Quando estou triste apenas ouço o silêncio da minha tristeza, assim ela fosse uma cortina isolante que me isola do mundo. Hoje não ouço nem o marulhar das ondas a se espraiarem na areia mas os mil sotaques das pessoas que enxameiam a minha solidão arenosa. Ouço apenas os meus medos, o grito das minhas saudades, os pontos negros dum passado maioritariamente claro. Tem dias que mesmo em luta a tristeza se sobrepõe. Deve ser para eu me ver melhor, me sentir no todo e me ouvir neste silêncio. Olho o zulmarinho a se espraiar em silêncio, constante vai e vem de filme mudo em que nem o piano se faz ouvir. 
Na verdade, aqui deitado, recordo-me que não consigo dizer adeus a mim que foi criança, adolescente e que ultrapassou tudo, sorrindo e que de vez em quando se ensurdece de tristeza passageira para melhor se conhecer.


Sanzalando

7 de julho de 2023

tempo

Olho o zulmarinho como quem vê uma miragem. Imagino a realidade, esqueci o vento e a areia fina que me pica as pernas desnudadas. è meu dia de ficar aqui a olhar a linha recta que é curva e que delimita o meu alcance visual. Imagino poder voar para lá de mim e ver mais além. Imagino-me não ter ultrapassado a fase mais importante de mim e ainda poder viver intensamente o tanto que eu gostaria.
Olho infinitamente e me perco em sonhos sonhados, gargalhadas dadas e por dar, em desejos concretizados e por concretizar. Olho-me e ainda me vejo com tempo.

Sanzalando

6 de julho de 2023

é a vida

Me deixo ir ao sabor dos meus passos, ao som das minhas palavras ou no silêncio dos meus pensamentos e divago mundo fora. Afinal de contas a vida é um monte de encontros e reencontros, de inícios e recomeços, de pausas e movimentos, assim que nem as minhas caminhadas. 
Dou um gole de birra estupidamente gelada e refresco o pensamento.
Continuo a caminhada, às vezes de olhos semi-cerrados como que a me proteger do vento ou de pensamentos menos bons. A vida é-a. Ela tem ventos, calmeiros, marés, que podem ser de sorte ou de azar, cheias ou vazias. A vida são estórias, umas reais e outras apenasmente imaginadas ou sonhadas. A realidade é uma, a vida vê-a de tantas formas que nem a forma do caminho consegue defini-la.
Dou outro gole da birra estupidamente gelada.
Continuo a caminhar à velocidade dos meus passos, ao ritmo das minhas palavras ou ao sabor dos meus silêncios. A vida são encontros e reencontros. Momentos vários que se unem num cordel por vezes forte e outras fraco. Não, não é um rosário de lágrimas ou contas em dívida. 
Bebo a acabo a birra estupidamente gelada.
Acabo a caminhada sabendo que o recomeço é logo ali num dado momento. É a vida.



Sanzalando

5 de julho de 2023

sorriso

Olha só para mim a caminhar de sorriso na cara parece estou a imitar o retrato da Mona Lisa. Sou mais lindo que ela, porque eu sou único que nem eu nesta cara parece é fabricação única. Acho fiquei assim desde que registei no tempo que devia estar a sorrir para a vida. Lembras-te dos negativos das fotografias e depois ias no fotógrafo revelar nova foto? É, todos os dias eu revelo-me. Sorriso lindo que nem o meu. Pensas que eu esqueci o passado? Não, nem o escondo porque ele faz parte deste meu presente. Eu sei que estou no meu lugar e não me perdi em memórias passadas e imaginações futuras. Eu é agora um misto de passado e espera de futuro. Com este sorriso eu vou longe que nem sei onde.
Eu sou um amor de sorriso ou um sorriso de amor.


Sanzalando

4 de julho de 2023

vagabundo-me

Vagabundo-me por ideias que não despedi nem indemnizei, que não pesei nem contrariei num contraditório cientifico de inteligência artificial, fazendo das minhas cruzes poemas ocasionais que elevam o amor que sinto por viver. Nas palavras soltas e ideias vadias, faço relatos de desgaste da saudade doce, do carinhoso abraço, do sorriso lindo que recebi em troca de tal passeio. O sol brilha, trago boné a menino rufia, de pala para trás, caminhando gingouso, feito rufia, menino de rua feito intelectual duma esquerda apanhada à boleia da vida, à espera que as rosas floresçam, que os narcisos se alindem e os jacintos de água não se afoguem.
Sou eu a caminhar por caminhos de palavras soltas e frases vadias num vice-versa da vida.
Por caminhos de palavras em carreiros de frases soltas e tantas perdidas palavras. Não tenho fim à vista nem sei onde foi o começo. Vou só seguindo o destraço raciocínio mental que me leva ao que sou hoje, ao que eu penso que sou e ao que outros pensam que sou. Uma realidade em várias formas, que visto sem disfarces, sem preocupações de agradar paladares, sem ferir memórias nem eliminar eclipses fugazes de pensamento. Não sou um mistério, narciso, jacinto ou espinho de rosas. Sou aquilo que sinto que sou, à distancia de mim, dentro de mim, da cidade ou do mato, da esquina ou da recta, do mar ou do ancoradouro. Não posso cuspir o que aos poucos vou esquecendo, não posso amaldiçoar as lembranças menos boas que tenho, não posso abrir o cacimbo para ver melhor, não posso esconder-me porque na minha quase perfeição onde há imperfeições.



Sanzalando

3 de julho de 2023

gosto-me

Nesta longa caminhada, aquela que faço desde que nasci ate aqui e depois eu não sei, venho à descoberta de muita coisa, desde mim até ao tu de cada um que se cruza comigo. É verdade que procurar fama, reconhecimento é como procurar amor. Essas coisas acontecem por acaso ou então terás uma vida inteira até lhes achares e às vezes nepias.
Tropeço, caio, levanto-me e caminho. Feliz ou quase. Desanimado nunca. Afinal de contas eu tenho-me em boa fama e reconhecimento. Ah, eu eu gosto muito de mim.



Sanzalando

2 de julho de 2023

delírios de lírios e outras coisas

Deixo-me ir em palavras, de muleta, bengala ou andarilho, coxeando ou me arrastando em monólogos cheios de cor ou em tons cinza, pastel ou garridas, porque é através delas que eu transmito o quanto sinto e eu não sei sentir pouco, esperar muito ou deixar ir numa inundação de nulidades. 
Às vezes o mar parece calmo e vem onda e arrasta tudo na frente, que a gente nem tem tempo de levantar a toalha e ela fica num exarcado, empapado e a gente ou ri ou chora porque mais nada pode fazer. Eu às vezes estou que nem assim. Sem palavras xingando-me, sem letras tortas nem frases feitas. Estou nulamente em tempestade. 
Podia dizer que estava meditando ou pensando nela. Alguém ia acreditar e eu não. Vou, desvou e não tenho para onde ir. Não por falta de mapa, não por falta de tempo, apenasmente porque não quero. E se eu não quero, não vou. Mas falo. Sou livre de falar desde aqui até à lua. Ou de ficar calado. Aborrecido? Não. Mau humor? Também não. Já só me chateio quando quero. Cresci o suficiente para compreender isso. Feliz? Claro. Rico? De amor e felicidade sim. Dinheiro? Que é que é isso? Não foi nunca meu propósito e segundo amigos até parece sou alérgico, pois eu estou onde ele não está. Preocupa-me? Não. Foi, é, opção minha. 
Aprendi a não estar na vida das pessoas quando elas não querem. Na minha é igual. 
Deixo-me ir em palavras e na transparência da tinta me transparento, porque eu não sou fundamental e fundamentalmente não sou eterno, eternamente. A minha eternidade é a minha vida e ela está escrita nas mil palavras duma qualquer praia, dum qualquer lugar ao sol e vê-se no meu sorriso, no brilho do meu olhar e na doçura do meu carinho ou afago.
Sou flores do meu jardim, árvores do meu mato, areia do meu deserto. Rosa, Lírio, Imbondeiro ou Mangueira, sou tudo isso e mais o eu que trago nesta farda que é o meu corpo.



Sanzalando

1 de julho de 2023

desesti da poesia

Desisti de ser poeta. É assim mais ou menos quando ao entardecer entra a noite. Não tinha jeito, não consegui dizer que o beijo sabe a flor ou que o colibri é o beija-flor da minha infância, o nectar da minha vida, a rima perdida, a dose da intolerância, a teia duma aranha como se fossem as minhas veias, aquilo que me apanha, no todo e não a meias. Perdi noites a pensar, tropecei em caminhos, não fui a nenhum lugar dos velhos pergaminhos, não salvei almas nem as atormentei, fui sempre nas calmas pelas estradas que apanhei. 
Desesti de ser poeta, de tropeçar no tempo, de deixar uma porta aberta à chuva ou ao vento. Desesti porque sei que o fiz.



Sanzalando