A Minha Sanzala

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19 de fevereiro de 2004

RECORDAR (29)

Sanzalando em Angola
Carta a um cetáceo 04-01-2004 10:54 Forum: Liceu Américo Tomás

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Apetece escrever uma carta. Uma carta de amor, de saudade ou de fazer de rir. Mas num tem quem vai receber a carta do outro lado. Assim, aproveitando, boleia escreve a uma baleia, que se calhares, por desventura da vida, nem que sabe ler.
Tu, minha amiga baleia que num tem nome, de que terra és tu? Que mesmo parvo que sou. Se baleia anda no mar como posso perguntar de que terra é? Pergunto doutra forma: de que oceano és? Num sabes o que é isso porque eles se misturam e tu não sabes ler as placas toponímicas (fui ver no dicionário para parecer que sei escrever bonito). Tu és azul, assassina ou lá que mais? Também não sabes? No teu oceano te chamam apenas baleia? Que bom deve ser poder passear nessa água toda. O quê? Tem uns animais que dão tiro com um ferro e corda em vocês? Mesmo nessa água toda num tens liberdade? Agora imagina o que é nesta zona que chamamos terra e que é muito mais pequena que a tua? Tem uns animais parecidos comigo que dão tiro mas sem ser com corda uns nos outros e ás vezes num sabes mesmo porquê. Tem outros, parecidos, que andam naquilo que chamamos estradas e parecem balas sem pistolas. Aqui também não é bom afinal. Mas tem que vai melhorar porque tem animais parecidos que estão a crescer e vão mudar tudo isto. Num estaremos aqui para ver mas vai mudar mesmo. Diz aí aos teus amigos para fazerem uma manifestação contra essa coisa de tirarem a vossa liberdade. Sabes, baleia amiga, quando era miúdo, tinha sonhos grandes, sonhava que todos eram iguais, todos tinham os mesmos direitos e obrigações, mas fui crescendo e vi que num era assim. Uns são mais iguais que outros e que os direitos às vezes são mesmo muito tortos. Me disseram que no antigamente da vida na minha terra também se 'caçava' baleias, mas eu inda num tinha nascido. Como vês, tudo vai mudando e qualquer dia és livre para andar nesse azul todo.
Sabes, nunca mais vi a menina do biquíni azul e do toldo cor de laranja. Sabes, há muito tempo que não tou com ouvido no kissange que té parece que chora mas é de alegria no coração. Sabes, há muito tempo que não sinto o cheiro da minha terra, que não respiro o ar puro que tinha lá, quando não vinha aquele vento do deserto zangado com areia que até cobria a estrada. Sabes há muito tempo que num sou picado por um mosquito que a tifa não matou e depois dava um frio dentro do corpo que até parece que dançava. Sabes, há muito tempo que não como o pirão feito naquela panela de ferro por cima da lenha e mexido com um pau, e comido com as mãos. Sabes, passou muito tempo, que até desqueci, que num subo numa árvore para roubar umas goiabas e ficar 5 dias sem ir na casa de banho. Sabes, faz tempo que num vou na chica até ás hortas ou ás salinas ali para os lados do Bero.
Pois é, num sabes o que é o tempo.
Como está ai o tempo? Este agora é outro. Tás a ver como é só complicação. Uma palavra e quer dizer duas coisas. Este agora é para perguntar se está a chover. Na água num te dá para ver? Desculpa!
Aqui não é Março e não está a chover.

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